sexta-feira, 7 de março de 2008

Robert Nozick, "Facto e Valor" (Parte I)

Começo hoje a publicar um excerto de um livro de que gosto bastante. Trata-se de "Philosophical Explanations" de Robert Nozick - um livro provocador, polémico, metodologicamente ultra-rigoroso e assertivo. Embora discorde da maioria das suas teses, é a ele que recorro para esclarecer alguns conceitos.
«Diferença de opiniões
No campo da ética existem duas opiniões conhecidas que, apesar de tentativas específicas, ainda ninguém conseguiu ligar: uma diz respeito ao fosso que existe entre o que é de facto e o que deve ser (facto e valor), e a outra (no âmbito do valor) entre forma moral e conteúdo moral. Parecem ser infrutíferas as tentativas de derivar o dever do ser ou conteúdo moral da forma moral.
Uma vez determinada, a diferença entre os conceitos de facto e valor parece não poder ser ultrapassada. Poderemos então evitar esta divisão provando que essa mesma determinação da definição ou delineamento do universo de factos pressupõe ou traz consigo certos valores? Permitam-me referir algumas das possibilidades.

(1) Os valores entram na própria definição do que é um facto; o universo de factos não pode ser definido ou especificado sem o recurso a determinados valores.
(2) Os valores entram no processo de conhecimento de um facto; sem se utilizar ou pressupor determinados valores, não poderemos determinar qual é o universo de factos, não poderemos distinguir entre o real e o irreal. Se alguns valores estão presentes nos processos que utilizamos para distinguir o real do irreal, os factos dos não-factos, então é impossível permanecermos firmemente no lado factual da distinção facto-valor, e sermos indiferentes ao outro lado da questão.

Tal perspectiva parece ser a seguinte. Os epistemólogos discutem o modo como poderemos distinguir a realidade da ilusão ou de um sonho. Hume defendia que as impressões tinham mais força e eram mais vívidas do que ideias, sonhos ou ilusões; contudo, este critério anda a par com a ideia da grande força e vivacidade de algumas experiências com drogas. Alguns escritores distinguiram o objectivo do subjectivo em termos de consenso: o objectivo é o que outros também reconheceriam ou com o qual concordariam. A única maneira de chegar a este consenso (de conjunto) é deixar O ser o processo psicológico cognitivo profundo através do qual organizamos o mundo; este opera em algo X indiferenciado, dando lugar a um universo de factos estruturados, delineados e diferenciados F. A ideia é a de que a própria operação O implicada no processo de determinação de factos a partir de algo indiferenciado X, de tal modo que O(X) = F, pode também operar no sentido de produzir valores V. É difícil perceber sobre que coisa isolada (não o mesmo que F) este mesmo processo O poderia operar por formar a criar valores; mais plausível é a ideia de que os valores são estruturados como resultado da interacção da operação O. Os factos são a primeira fase na estruturação do X incipiente, enquanto que os valores são a fase seguinte:
O(X) = F
O(F) = V.
Ou talvez esta segunda fase do processo opere não apenas em F, mas em ambos F e X, de tal modo que:
O(X,F) = V
*
Porém na ausência de percepção mínima sobre o processo cognitivo profundo de O, nada mais podemos fazer do que assinalar esta terceira possibilidade estrutural; tal como as outras duas acima listadas, ela recusa aceitar de forma garantida os factos como não sendo problemáticos, e por isso mesmo procura um caminho à volta ou abaixo da distinção facto-valor a qual, uma vez estabelecido, permanece para nos inquietar.
Todavia uma outra possibilidade teórica aceita estas diferentes opiniões como problemas reais e vastos; tenta explicar por que persistem, talvez esperando que a sua explicação, sendo os factores que os explicam apresentados, possa ela mesma introduzir dados adicionais que nos ajudem neste processo. É um teste à nossa capacidade de análise do universo ético para que compreendamos não apenas que existem estes abismos (se é que existem) mas também porquê. (De igual modo, queremos entender por que é que o conteúdo moral vasto não pode resultar da forma da moralidade.)
Podemos perguntar por que é que um dever ou asserção ética E não pode resultar da totalidade I ou de asserções reais sobre o que é. Ao encontrar o factor explicativo correcto S, podemos questionar se é suficiente quando conjugado com os factos (anteriores) I no sentido de produzir a afirmação ética E, de modo que E seja resultado de I&S. Caso contrário, podemos procurar explicar a razão pela qual isso não acontece, encontrando o factor explicativo S1, e perguntarmo-nos se acrescentando esse factor neste momento nos permitirá chegar à asserção ética E, sendo que E deriva de I&S&S1. Poderemos repetir este processo até que mais nenhum factor explicativo seja apresentado, verificar se a combinação de todos eles com o I factual é suficiente para produzir uma asserção ética E, e se caso ainda não se verifique, podemos questionar qual seria o factor mínimo, cujo acrescento seria suficiente para a derivação da asserção ética E. Tomando a sério o fosso existente entre o ser e o dever, e explicando-o, podemos ter esperança em ligar esta separação ou pelo menos reduzi-la.
A explicação de por que não podemos fazer derivar dever de ser encontrará uma diferença significativa entre ambos a qual essa derivação não torna óbvia. A explicação encontrará alguma propriedade contida no que é mas não no que deve ser e a qual está preservada sob a derivação, ou alguma propriedade que apenas se encontra no dever e não no ser e cuja ausência é preservada sob a derivação. Mesmo a partir do momento em que conhecemos uma propriedade específica P, é difícil perceber de que modo somos beneficiados na derivação de um dever simplesmente acrescentando a premissa: qualquer afirmação ser I tem propriedade P enquanto que uma afirmação E não, e tudo o que derivar de algo com P também terá P. Deste modo, se algum benefício houver, resultará da explicação de por que o que é tem P e o que deve ser não tem (ou o contrário).
Poderíamos iniciar a nossa busca do requisito explicativo da propriedade P considerando outros casos onde um tipo de asserção não pode derivar de outra.
1. Metáfora: O sentido metafórico de uma frase não pode resultar do seu sentido literal. É o dever como que uma metáfora sobrejacente ao ser?
2. Explicação: A explicação de informação não pode resultar dessa informação. É o dever ser como que uma explicação do ser?
3. Efeito: Um efeito não pode resultar da sua causa, apesar de tentativas racionalistas de analisar a relação causal como uma relação lógica. É o dever ser como que um efeito do ser?
4. Conhecimento por familiaridade: O tipo de conhecimento que ocorre quando se reconhece uma coisa não pode ser conseguido apenas quando possuímos muitos dados acerca dela. É o dever como que o estabelecimento de uma a relação de familiaridade a partir daquilo que o que é nos transmite? ( Ou, se nenhum “sabendo que” específico se seguir ao conhecimento por familiaridade, acontecerá o contrário?)
5. Auto-referência reflexiva: Uma asserção de auto-referência reflexiva não pode derivar apenas de outras que o não são. É o dever como que uma asserção reflexiva na primeira pessoa interpenetrando o que é objectivo e impessoal?
6. Visto como: Sendo que algo é visto como Q não pode derivar de outras propriedades que possui( e que não se referem à visão). É o dever como que a maneira de ver o ser?
7. Sentido: O sentido de uma frase não pode derivar dos sinais sem vida da inscrição que a transporta. É o dever ser o significado do ser?
8. Exemplarismo: Uma perspectiva recente da análise filosófica do pensamento considera que não há correlação (ou identidade) entre tipos de estados mentais e estados concretos, ao passo que cada estado mental individual, cada estado mental representativo, é idêntico a um estado factual individual, a algum estado factual representativo. Está o dever ser, enquanto não estabelece qualquer tipo de relacionamento com o ser por forma a permitir que as derivações ocorram, a assumir um posicionamento de identidades representativas com o ser?
9. Identidade sintética necessária: Em analogia com as ideias de Kripke sobre a identidade necessária da luz e radiação electromagnética, serão a unidade orgânica e valor necessariamente idênticos, embora este não seja um dado à partida? Será a unidade orgânica rigidamente referida como ‘valor’?
Nenhum destes casos esclarece a relação entre o dever e o ser. E discussões sobre a ‘emergência’ do dever em relação ao ser nada explicam sem que o modo como essa emergência se dá seja especificado. Ou a explicação correcta reside em qualquer outra analogia, ou o fosso entre o ser e o dever é muito sui generis, em nada comparável a outros hiatos derivativos. (Será cada um dos outros esclarecido pelo resto?) Ou poder-se-á considerar que não é necessária qualquer explicação sobre por que é que esse hiato existe; pelo contrário, a conjectura de que a derivação poderá ter lugar, que a ética pode não ser um universo autónomo, é enganadora.»


* Qual seria o resultado de uma interacção num terceiro estádio? Poderá O(X;F;V)igualar o Ein Sof ilimitado e místico, U, enquanto que uma interacção adicional não trará nada de novo, sendo que O(X;F;V;U) = U ? E se fizer sentido que O possa ser auto-reflexivo e aplicável, o que traz O?

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