segunda-feira, 31 de março de 2008

Amartya Sen, "Igualdade de quê?" (Parte II)

«A análise da última secção apontou para o carácter partidário das interpretações habituais da pergunta “porquê a igualdade?”. Essa questão, como sustentei, tem simplesmente de ser enfrentada do mesmo modo, mesmo por aqueles que são vistos - por si mesmos e pelos outros - como "anti-igualitários", já que eles também são igualitários em algum aspecto relevante das suas teorias. Mas claramente não se defendeu que a pergunta "porquê a igualdade?" era, em qualquer sentido, vã. Podemos ser persuadidos de que as disputas básicas provavelmente serão sobre a "igualdade de quê?", mas ainda poderia ser perguntado se é necessário haver uma exigência de igualdade em algum aspecto relevante. Mesmo se resultar que toda teoria substantiva dos ordenamentos sociais em voga seja, de facto, igualitária nalgum aspecto - visto como central em tal teoria - ainda há necessidade de explicar e defender aquela característica geral em cada caso. A prática compartilhada - mesmo que fosse universalmente compartilhada - ainda necessitaria de alguma defesa.
O problema a ser enfrentado não é tanto se deve haver, por razões estritamente formais (tais como a disciplina da "linguagem da moral"), igual consideração por todos, em algum nível, em todas as teorias éticas do ordenamento social
[1]. Esta é uma questão interessante e difícil, mas não é necessário enfrentá-la no actual contexto; a resposta para ela não é, na minha perspectiva, de forma alguma clara. Estou mais interessado na questão de saber se as teorias éticas devem ter este traço básico de igualdade para serem substantivamente plausíveis no mundo em que vivemos.
Pode ser útil perguntar por que tantas teorias substantivas completamente diferentes da ética dos ordenamentos sociais têm o traço comum de exigir a igualdade de alguma coisa - algo importante. Creio ser possível defender que, para possuir algum tipo de plausibilidade, o raciocínio ético sobre problemas sociais deve envolver a igual consideração elementar por todos em algum nível visto como crítico. A ausência de tal igualdade faria com que uma teoria fosse arbitrariamente discriminatória e difícil de ser defendida. Uma teoria pode aceitar - na verdade, exigir - a desigualdade em termos de inúmeras variáveis, mas ao defender essas desigualdades seria difícil escapar da necessidade de as relacionar, em última instância, com a igual consideração por todos de algum modo adequadamente substantivo.
Talvez esta característica se relacione com a exigência de que o raciocínio ético, especialmente sobre ordenamentos sociais, tenha de ser, nalgum sentido, plausível para os outros - potencialmente todos os outros. A pergunta "porquê este sistema?" tem de ser respondida como se fosse para todos os participantes desse sistema. Existem alguns elementos kantianos nesta linha de raciocínio, ainda que a igualdade exigida não necessite de uma estrutura estritamente kantiana
[2].
Recentemente, Thomas Scanlon (1982) analisou a relevância e a força da exigência de que devemos "ser capazes de justificar as nossas acções aos outros com razões que eles não pudessem razoavelmente rejeitar"
[3]. O requisito da "equidade" sobre o qual Rawls (1971) constrói sua teoria da justiça pode ser visto como propondo uma estrutura específica para determinar o que se pode ou não razoavelmente rejeitar[4]. De igual modo, as exigências de "imparcialidade" – e "algumas formas substantivamente rigorosas de "universalizabilidade" - invocadas como requisitos gerais têm, nalguma forma mais relevante, esse traço de igual consideração[5]. O raciocínio deste tipo geral certamente terá muito a ver com os fundamentos da ética, e surgiu de modos diferentes nas bases metodológicas de propostas éticas substantivas[6].
A necessidade de defender as nossas teorias, juízos e pretensões diante dos outros que podem - directa ou indirectamente - estar envolvidos, faz da igualdade de consideração nalgum nível um requisito difícil de evitar. Há questões metodológicas interessantes relacionadas com o estatuto desta condição; em particular: se é um requisito lógico ou uma exigência substantiva
[7], e se está relacionado com a necessidade de "objectividade" em ética[8]. Não prolongarei agora estas questões, já que os principais objectivos deste ensaio não dependem das respostas que lhes dermos[9]. O que tem interesse directo é a plausibilidade da pretensão de que a igual consideração nalgum nível - um nível visto como relevante - é uma exigência da qual não se pode facilmente escapar ao apresentar uma teoria ética ou política dos ordenamentos sociais. Também é de considerável interesse pragmático notar que a imparcialidade e a igual consideração, numa forma ou noutra, fornece um pano de fundo comum para todas as propostas éticas e políticas neste campo que continuam a receber apoio e defesa consistentes[10]. Uma consequência de tudo isso é a aceitação - frequentemente implícita - da necessidade de justificar as vantagens disparatadas de diferentes indivíduos em coisas que importam. Esta justificação consiste com frequência em mostrar a conexão integral dessa desigualdade com a igualdade em algum outro espaço importante - alegadamente mais importante[11].
De facto, é a igualdade nesse espaço mais importante que pode então ser vista como contribuindo para as exigências contingentes da desigualdade nos outros espaços. Faz-se repousar a justificação de algumas características da desigualdade em alguma outra característica da igualdade, considerada como mais básica nesse sistema ético. A igualdade no que é visto como o "núcleo" é invocada para uma defesa racional das desigualdades resultantes nas "periferias" distantes.»
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[1] Para uma exposição e defesa clássicas desta pretensão analiticamente ambiciosa, ver Hare (1952, 1963).
[2] Para razões para levar em conta as diferenças (por exemplo, de compromissos ou obrigações pessoais) que tendem a ser ignoradas pelo menos em algumas versões do formato uniformizador kantiano, ver Williams (1981), Hampshire (1982), Taylor (1982). Sobre algumas questões afins, ver Williams (1973a), onde também é discutido por que "os vários elementos da ideia de igualdade" nos impulsionam em "diferentes direcções" (p. 248). Mas a aceitação da importância das diferentes obrigações e compromissos obviamente não descarta a necessidade geral de que nossa ética seja plausível para os demais.
[3] Ver também Scanlon (1988a). Sobre problemas afins, ver Rawls (1971, 1988c) , B. Williams (1972, 1985), Mackie (1978a), Ackerman (1980,1988), Partlt (1984), O'Neill (1989).
[4] Ver também a análise posterior - mais explícita - de Rawls desta conexão, em Rawls (1985, 1988a, 1990).
[5] Ver Mackie (1978a). O raciocínio baseado na imparcialidade é usado por Harsanyi (1955) e Hare (1963) para defender a escolha da ética utilitarista. A ideia de igual consideração, na forma da exigência de imparcialidade, é invocada mesmo na moldagem de teorias que assumem explicitamente uma forma "anti-igualitária". Por exemplo, ao apresentar seu argumento a favor de uma "moral por acordo", Gauthier (1986) afirma - correctamente, considerada a sua definição particular de igualdade - que a "igualdade não é uma preocupação fundamental na nossa teoria", mas continua imediatamente a explicar que "nós apelamos para a racionalidade igual dos contratantes para mostrar que o seu acordo satisfaz o padrão moral de imparcialidade" (p. 270, a ênfase é nossa).
[6] Sobre isso ver Sen (1970a: cap. 9).
[7] Esta questão pode ser comparada com o exame de John Mackie (1978a) sobre se a necessidade de universalização é "uma tese lógica" ou "uma tese prática substantiva" (p. 96).
[8] Sobre a abrangência da objectividade, ver Nagel (1980, 1986), McDowel1 (1981, 1985), Wiggins (1985, 1987), H. Putnam (1987, 1993) e Hurley (1989). Sobre o outro ponto de vista, ver também Harman (1977), Mackie (1978a, 1978b) e B. Williams (1981, 1985).
[9] Alguns aspectos particulares desta questão são discutidos em Sen (1983b, 1985a).
[10] Esta observação aplica-se especificamente aos ordenamentos sociais - e portanto a teorias de filosofia política e não de ética pessoal. Na ética do comportamento pessoal, têm sido apresentados argumentos convincentes a favor da permissão ou da exigência de assimetrias explícitas no tratamento de pessoas diferentes. Tais argumentos podem relacionar-se, por exemplo, com a permissividade - talvez até a necessidade - de cada um prestar atenção especial aos seus próprios interesses, objevtivos e princípios vis-à-vis os dos outros. Ou podem relacionar-se com o requisito de assumir uma maior responsabilidade para com os membros da sua própria família e outros a que se esteja "ligado". São discutidos tipos diferentes de assimetrias envolvidas na ética pessoal em B. Williams (1973a, 1973b, 1981), Mackie (1978a), Nagel (1980,1986), Scheffler (1982), Sen (1982b, 1983b), Regan (1983) e Par6.t (1984). Ainda que essas exigências possam também ser vistas em termos de exigências de igualdade de tipos bem especiais, elas tendem a ir contra as concepções políticas habituais de igualdade "anónima" (sobre isso ver Sen 1970a).
[11] Não é necessário encarar a maior relevância como intrínseca ao espaço em si mesmo. Por exemplo, a igualdade de bens primários na análise de Rawls (1971, 1982, 1985, 1988a), ou de recursos na teoria de Ronald Dworkin (1981, 1987), não é justificada pela importância intrínseca dos bens primários ou dos recursos. A igualdade nesses espaços é considerada importante porque eles são instrumentais quanto a proporcionar às pessoas oportunidades equitativas, nalgum sentido para procurar as respectivas metas e objectivos. Esta distância introduz claramente - diria eu – uma certa tensão interna nessas teorias, uma vez que a importância derivativa dos bens primários e dos recursos depende das respectivas oportunidades para converter os bens primários e os recursos em satisfação das respectivas metas, ou em liberdades para as procurar. As possibilidades de conversão podem ser, na verdade, bastante diversas para pessoas diferentes, e isso pode de facto – defendo eu - enfraquecer a razão básica da importância derivativa da igualdade de quotas de bens primários ou recursos. Sobre isso, ver caps. 3 e 5 (ver também Sen, 1980a, 1990b).

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