domingo, 2 de março de 2008

Oitenta anos de... lucidez e coerência! (III)

Publico a seguir a entrevista que o Prof. Dr Daniel Serrão deu ao Correio da Manhã e que foi publicada hoje. Nela ficamos a conhecer mais em pormenor o homem, a sua fé e as suas crenças éticas relativamente às questões de vida e de morte. Ficamos também a perceber porque gosta de afirmar que "nenhuma dificuldade é superior à nossa determinação de a vencer" (Público - 29/02).


«Transmontano, filho de um funcionário público, um entre três irmãos, todos brilhantes na escola, aos 80 anos o professor Daniel Serrão confessa a sua vontade imensa de viver... viver ainda muito mais tempo. Até aos 120, a duração bíblica. Ilustre cientista, participou na declaração universal do genoma humano e é membro da Academia Pontifícia para a Vida, a convite de João Paulo II.

- Que importância tem a Academia das Ciências na sua vida?

- Passei a exprimir-me num areópago fora da paróquia do Porto. Fui eleito, ao que parece, por unanimidade. Ao que parece, porque as votações são secretas.

- A sua cadeira é a número treze

- Não significa nada, porque não sou dado a esoterismos numéricos.

- Quando percebeu que queria ser médico?

- No quinto ano, quando iniciei os estudos de biologia. A minha cabeça despertou-me para o fenómeno da vida.

- Fernando Pessoa escreveu: ‘Não evoluo, viajo’. A vida é uma viagem?

- A vida acontece e realiza-se no tempo. Tudo o que acontece no tempo é uma viagem que pode ser física ou realizar-se nos nossos interiores. Por vezes dá-se uma suspensão quando uma profunda meditação nos desliga da sequência do Mundo natural e o nosso tempo interior torna-se diferente do tempo dos relógios.

- Realizará outras viagens?

- Acredito, pela intuição, que a vida dos seres humanos não é justificada apenas pelo seu corpo e cérebro. Essa parte da autoconsciência não é rigorosamente fundamentada no funcionamento do sistema nervoso central e nunca desaparecerá.

- Fala de imortalidade do espírito?

- Falo de imortalidade das criações do espírito. Algumas delas, quando as colocamos em suportes como o livro, música ou poema, ganham eternidade. Continuamos a ler Platão e a ouvir Beethoven. A criação da sua autoconsciência permanece.

- O que entende por autoconsciência?

- É o conceito moderno de espírito. O Mundo não existia enquanto não apareceu uma inteligência humana para o pensar. Estava mas não existia. São coisas diferentes. É o conhecimento do Mundo que realiza a existência do Mundo. A existência e sentido atribuídos às percepções do Mundo não morrerão nunca.

- Comunicam umas com as outras?

- (Pausa) Não sei.

- Como foi a sua infância?

- Nasci em Vila Real, onde vivi até aos dois anos. Depois, o meu pai, funcionário público, foi transferido e mudámo-nos para Viana do Castelo.

- Tem alguma recordação especial?

- Em casa havia uma edição impopular da Bíblia. Teria sete anos quando peguei no livro e, naquele tempo, Deus era representado por um velho com longos cabelos e barbas poisado numa nuvem. Aquele homem tinha-me criado e ao Mundo. Estabeleceu-se uma relação muito especial com o Barbudo e demorei muito tempo para me libertar daquela figura.

- Tem irmãos?

- Tive dois. Vivíamos numa sólida relação familiar. Metidos uns com os outros.

- Era todos bons alunos?

- Os irmãos Serrão eram muito conhecidos por estarem simultaneamente no quadro de honra da escola durante vários anos. O meu irmão mais velho atingiu o topo da carreira de engenheiro. O mais novo doutorou-se em Química e foi professor catedrático de Química Orgânica na Universidade de Ciências.

- É pai de seis filhos. Há uma crise na família?

- Pode haver crise de um certo modelo temporal de família. A história da família, ao longo dos milénios, mostra crises e transformações sucessivas. É preciso analisar se as transformações que a família está a sofrer ameaçam a sobrevivência da Humanidade.

- Ameaçam?! Hoje defendem-se vários modelos de família

- A família tem de existir nem que seja limitada à mãe e ao filho. As relações homossexuais não são famílias porque não podem ter como objectivo a gestação de filhos. São associações de pessoas que se unem por laços de afectividade e contacto sexual.

- Não é preferível que as crianças abandonadas em instituições estejam a cargo de pessoas do mesmo sexo?

- Não há demonstração científica de que a criança, sendo educada por duas pessoas do mesmo sexo, traga prejuízo significativo para a capacidade de futura escolha do objecto sexual. Desejo que prevaleça o tipo de família heterossexual.

- Entre 1974 e 76 impediram-no de exercer funções académicas e hospitalares. Foi vítima de saneamento

- Acusaram-me de várias falsidades. Uma delas que tinha denunciado estudantes à PIDE. Era antileninista e antimarxista, mas tinha as minhas ideologias.

- Um ano depois foi reintegrado

- O saneamento suscitou muita agitação entre pessoas que me consideravam respeitável e, passado um ano, fui reintegrado com todas as condições. Pagaram-me o ano em que estive sem trabalhar. O despacho do ministro foi anulado.

- Como descobriu a bioética?

- Fui convidado para leccionar a cadeira de deontologia e ensinei bioética. Nessa altura, andava a ler trabalhos que surgiam sobre a temática da bioética. Coincidiu com o primeiro seminário organizado pelo Conselho da Europa. Participei na construção da declaração universal do genoma humano como património da humanidade na UNESCO.

- Que importância tem a declaração universal do genoma humano?

- No plano de um acordo entre nações para que prevaleça o respeito pelos direitos e dignidade humanos.

- Qual é a personalidade que mais o marcou na vida?

- São tantas

- Por exemplo

- Estou na quinta forma de viver. A cada uma dessas vidas corresponde uma figura que me marcou. Aos 17 anos descobri, casualmente, Fernando Pessoa numa livraria de Aveiro. Continuo muito ligado a esse grande judeu. Ajuda-me em situações difíceis e a fugir à rotina da vida. Depois foi o Papa João Paulo II. A primeira vez que falámos senti um deslumbramento.

- Como surgiu o convite para membro da Academia Pontifícia para a Vida?

- Por anúncio apostólico num envelope que continha um outro no qual havia sido escrito ‘Sob Segredo Pontifício’ (em latim). Lá dentro estava uma carta assinada por Sua Santidade, João Paulo II, a convidar-me para ser membro.

- É um homem de fé. Como se relaciona com Deus?

- É uma relação muito pessoal e íntima. Misteriosa. Pouco formal. É uma espécie de comunicação entre o espírito que sou e essa outra forma de espírito transcendental em que acredito. Ultrapassei completamente o sujeito das barbas.

- Bento XVI está a realizar um bom magistério?

- A Igreja Católica vive muito do carisma dos Papas. O actual tem uma expressão completamente diferente do seu antecessor. É um intelectual de grande cultura teológica. Especialista na componente mais formal da Igreja. Menos adequado à afectividade.

- Mas escreveu uma encíclica sobre o amor

- Uma reflexão profundamente intelectual sobre o amor, chegando a afirmações da maior gravidade teológica. Diz que quem não reconhecer, na sua intimidade, o amor de Deus, não consegue sequer ter fé em Deus. É uma argumentação intelectual e teológica.

- Uma vez disse: ‘Entre ciência e religião, não há conflito algum'

- O conflito que existiu foi artificialmente criado. É perfeitamente possível fazer permanecer a paz entre Religião e Ciência, desde que a Ciência não se considere uma Fé e a Fé não se considere uma Ciência. A Fé não pode dizer que a Ciência não presta. Nem a Ciência dizer que a Fé é uma inutilidade.

- A medicina regenerativa é o futuro da humanidade?

- Tem um limite. Não vai conseguir dar imortalidade ao corpo do Homem. Pode permitir dar mais e melhor vida.

- De que modo?

- É um processo natural que a Medicina consegue potenciar. É sabido que o fígado regenera desde os tempos da mitologia grega. Hoje há a possibilidade de novas células nervosas serem criadas pelo organismo para reparar perdas.

- Pode conferir-se ao embrião o mesmo estatuto que se atribui ao ser humano?

- O embrião é um ser vivo da espécie humana. Está comprovado cientificamente. A questão está no tipo de estatuto que a sociedade lhe confere. É uma questão cultural.

- A sociedade portuguesa estabeleceu novos patamares

- Nunca ninguém explicou porque se criam patamares de respeito. Até certa altura, não se merece respeito nenhum; a partir da meia-noite do último dia da nona semana, já se merece. É uma decisão arbitrária tomada por motivos exteriores à biologia.

- Quando começa o direito à vida?

- Quando termina a conjugação da informação genética masculina com a informação genética feminina e está criado um novo ser vivo da espécie humana. O embrião humano, quer esteja na trompa da mulher ou no laboratório, apela a viver.

- É contra o acto de abortamento?

- O abortamento é a solução fácil. É feito à custa da vida de um ser vivo. Ninguém tem direito moral ou ético de cometer esse acto. É a revelação da pulsão de morte (Freud) que vive dentro do ser humano. A mãe é capaz de matar o filho que tem dentro de si. É possível matar um embrião porque é pequeno e não tem forma de defesa, mas já não há medo de matar uma criança acabada de nascer. É considerado infanticídio.

- E em caso de anomalias graves do feto e violação?

- Nunca critiquei a anterior lei de abortamento. Nem para casos de violação. Para esses casos, o acto de abortamento é uma intervenção médica com finalidade de tratamento.

- Muitos médicos recusam fazer abortos

- Não concordo que os médicos tenham sido utilizados para resolver um problema de incomodidade da mulher grávida. Mas as sociedades decidem. Ainda há sociedades que têm pena de morte e consideramos isso horroroso

- A criopreservação das células do cordão umbilical é importante?

- A possibilidade de se precisar das células é pequena, mas pode marcar a diferença entre a vida e a morte numa criança com uma leucemia aguda. Substitui a medula doente pelas células estaminais conservadas de forma a fazer uma nova medula.

- Se pode fazer a diferença entre a vida e a morte, os bancos de preservação não deveriam tornar-se públicos?

- Se têm utilidade, deviam ser públicos. Caso contrário, discriminam-se as crianças. Umas nascem e têm acesso a medula se pagarem; as outras não, porque os pais não têm dinheiro para pagar

- É uma posição política?

- Também podiam servir para outras pessoas, porque as células são uma reserva quase infinita.

- É optimista?

- Optimista incurável. Quando me diagnosticaram cancro, há seis anos, não tive um único momento em que imaginasse morrer dele.

- O que suporta esse optimismo?

- A Fé. Fomos criados para ser felizes. Tudo o que acontece – inclusive o cancro – é um pretexto para se ser feliz.

- Como espera chegar aos 100 anos?

- A Bíblia diz que a duração média do homem é de 120 anos. Sabe-se que o relógio biológico da espécie humana é, igualmente, de 120 anos. Portanto sou candidato.

PERFIL: DANIEL SERRÃO

Nasceu há 80 anos em Vila Real, onde viveu até aos dois anos, depois mudou-se com a família para Viana do Castelo. Irmão de um engenheiro e de um professor catedrático de Química, teve seis filhos.

ORIGEM: HEBRAICA

“O último ser humano queimado pela Inquisição em Lisboa no século XVIII chamava-se Pedro Serrão. Um antepassado. Cristão-novo. Como era uma importante figura, a Inquisição teve um acto de caridade. Primeiro, foi afogado na ribeira e, depois, queimado na fogueira. Um acto de caridade porque queimado vivo era pior do que queimado morto”, conta Daniel Serrão.

NA UNIVERSIDADE

“Quando era estudante na Universidade de Medicina do Porto foi criada uma orquestra sinfónica no conservatório, nas redondezas das instalações universitárias. Convidavam os alunos a assistir aos ensaios e ia-se em mangas de camisa. Não sabia nada de música clássica. A minha vida era bisonha e fechada. Ensaiavam Bethoveen. Nessa altura recebi a iluminação do que é a música clássica. Ainda hoje, quando oiço reproduções da quinta sinfonia e não entra no tempo próprio, apercebo-me. São milésimos de segundo. Eduquei o ouvido naqueles ensaios”, diz o professor Daniel Serrão.»

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