quarta-feira, 26 de março de 2008

Alfredo Marcos, "Ética Ambiental" (Parte V)

«A Ética da Terra
A origem desta corrente encontra-se na obra de Aldo Leopold (1887-1948), A Sand County Almanac
[1], publicada em 1949; um texto pioneiro pelo seu conteúdo e até belo na sua forma literária. Leopold é, em primeiro lugar, um ecologista, um dos fundadores desta ciência, bem como um observador apaixonado, sensível, cuidadoso e irónico da natureza. Era ainda um magnífico professor, segundo o que pudemos saber. Contudo, não acredito que possa de alguma forma ser considerado um filósofo sistemático. A sua obra faz vibrar perante os nossos olhos o emaranhado de relações ecológicas entre os seres vivos, e entre estes e a parte não viva da natureza. Os seus escritos soam como a melhor prosa dos grandes naturalistas, e podem recordar-nos os belos relatos de Darwin sobre a sua viagem no Beagle. A simpatia poética com que observa a natureza permite-lhe relativizar a importância, às vezes dramática e grandiloquente, que nos atribuímos enquanto humanos. O seu conhecimento profundo das relações ecológicas habilita-o a desvalorizar rapidamente o húmus do individualismo: também há verdade e ser em tudo e nas suas relações, e não apenas nas substâncias individuais. A sua arma é a ironia e às vezes a ternura. Mas nem todos os seus leitores estão dispostos a entrar nesse jogo. Há quem odeie o também e prefira o apenas. Questão de advérbios. Alguns empenharam-se em converter as máximas de Leopold em axiomas, e em dar um sentido literal às suas ondulantes metáforas. Visto desta forma, sem graça e em sentido literal, acaba por parecer um misantropo ecofundamentalista.
É verdade que Leopold insiste na realidade da “comunidade biótica”, formada pela matéria orgânica e não orgânica e por todos os seres vivos. É certo que chegou a escrever que “algo está correcto quando tende a preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica”
[2]. Para ele seriam legítimos apenas os comportamentos que não interferissem com o profundo equilíbrio das conexões naturais entre os seres. De acordo com este pressuposto, o homem é considerado como apenas mais um. Um ser, claro está, cuja acção pode ser justa ou injusta. Mas também é certo que esta afirmação, tão frequentemente citada, tem um contexto pertinente para a sua interpretação. Tentarei mostrar qual. O parágrafo em que aparece a afirmação antes citada, diz o seguinte:

O ponto que havia de mover para pôr em marcha o processo de evolução que conduziria a uma ética da terra é simplesmente este: deixar de pensar que o uso adequado da terra é apenas um problema económico. Examinar cada questão em termos do que é correcto de um ponto de vista ético e estético, para além do que convém economicamente. Algo é correcto quando tende a preservar a integridade, a estabilidade e beleza da comunidade biótica. É incorrecto quando tende ao contrário.
[3]

Não parece que exista aqui qualquer tentativa de colocar os indivíduos ao serviço do todo, muito menos os seres humanos ao serviço da Terra, mas tenta-se chamar a atenção para certos valores esquecidos na relação entre o ser humano e a natureza. Não nego, contudo, que a fórmula concreta que fecha o parágrafo seja infeliz. Mas vejamos uma passagem do mesmo livro em que a ironia se manifesta. Está a falar do anel dos pássaros, concretamente de um bando de pássaros negros, que Leopold levou a cabo durante mais de uma década para estabelecer a sua demografia e longevidade:

No sexto Inverno, o 65290 não apareceu, e a sua ausência nas quatro campanhas seguintes confirmou o veredicto de que estava “desaparecido em combate”. Apesar de tudo, 65290 foi o único […] que mostrou engenho para sobreviver durante cinco Invernos. 3 duraram quatro anos, 7 sobreviveram três anos, 19 alcançaram os dois anos, e 67 desapareceram depois do primeiro Inverno. Portanto, se me dedicasse a vender seguros de vida a estes pássaros, poderia calcular o prémio com total garantia. Mas colocar-se-ia o problema seguinte: em que moeda se pagaria às viúvas? Imagino-me com ovos de formiga […] Parece – especula Leopold sobre as causas de morte – que o tempo é o único assassino e é tão desprovido de humor e de sentido das suas proporções que é capaz de matar um pássaro negro. Suspeito que a Escola Dominical dos pássaros negros lhes ensinou os pecados mortais: não entrarás em locais ventosos durante o Inverno e não te molharás antes da ventania.
[4]

A ética da terra de Aldo Leopold constituiu uma crítica audaz e precoce do antropocentrismo (do que se pode chamar de antropocentrismo forte), do optimismo tecnológico ingénuo, dos valores materialistas de uma sociedade voltada para o consumismo, inconsciente dos seus limites, ignorante da sua dimensão ecológica.
Jorge Reichmann, o editor da obra de Leopold em espanhol, afirma: “para mim, Leopold encontra-se mais no terreno comum existente entre o antropocentrismo moderado e o biocentrismo débil”
[5]. Acredito que esta é uma interpretação correcta da posição de Leopold, que não é, em qualquer caso, um anti-humanista, É verdade, contudo, que é difícil construir uma autêntica visão filosófica sobre a ironia e a denúncia de Leopold. Quando se tenta, corre-se o risco de chegar a conclusões morais paradoxais e ameaçadoras da dignidade do ser humano. Encontramos um exemplo claro deste deslize na obra de Baird Callicot, um dos discípulos de Leopold. Nos primeiros escritos de Callicot podemos apreciar o mais cru fundamentalismo ecológico alimentado com todo o tipo de afirmações misantrópicas. Para fazer justiça a Callicot há que reconhecer que acabou mais tarde por recuar nas suas teses mais infelizes. De qualquer forma, a interpretação filosófica que Callicot faz de Leopold continua a ser tendencialmente ecofundamentalista (sob o nome de ”holismo”). No contexto de uma discussão filosófica técnica, as afirmações que melhor testemunho dão de Leopold são deste tipo:

A ética ambiental situa o valor último da comunidade biótica e atribui diferentes valores morais aos indivíduos que fazem parte da mesma função deste nível […] A entidade inanimadas, como oceanos, lagos, montanhas […] atribui-lhes mais valor que aos animais individuais.
[6]

E, segundo Callicot, o ser humano não é um caso especial. Em consequência, a procura de uma fundamentação filosófica no emotivismo de Hume e na sociobiologia introduzem, na minha opinião, novos elementos que debilitam a sua ética ambiental, que se mantém, assim, dentro da tradicional alternância moderna entre o cientismo e a irracionalismo.»

[1] A. Leopold: A Sand County Almanac and Sketches Here and There. Oxford University Press, 1949.
[2] A. Leopold: Una Ética de la Tierra. Ed. Los Libros de la Catarata, Madrid, 2000, p. 155 (introduzi algumas modificações no estilo da tradução).
[3] A. Leopold: Una Ética de la Tierra. Ed. Los Libros de la Catarata, Madrid, 2000, p. 155 (meu sublinhado em itálico).
[4] A. Leopold: Una Ética de la Tierra. Ed. Los Libros de la Catarata, Madrid, 2000, pp. 113-4. Às vezes parece que Leopold e outros ecocentristas, criticam o antropocentrismo, mas que caem de costas no mais ingénuo antropocentrismo. Entendo que apenas uma leitura irónica pode salvar Leopold desta crítica.
[5] J. Reichmann: Introducción a: A. Leopold: Una Ética de la Tierra. D. Libros de la Catarata, Madrid, 2000, pp. 32-3. O que Reichmann chama de “antropomorfismo moderado” é aproximadamente o que chamo de “humanismo”.
[6] Por exemplo, Callicot m 1980 citav com aprovação Eduward Abbey, segundo o qual os veículos de resgate não deveriam entrar numa reserva natural mesmo que estivesse um ser humano em perigo, e estava de acordo com Garret Hardin que considerava que era pior matar uma serpente do que um homem. Pode ver-se J. B. Callicot: In Defense os The land Ethics. SUNY Press, Albany, 1989. Neste texto aparecem vários artigos de Callicot. Na primeira parte pode seguir-se a sua evolução relativamente aos direitos e valores dos indivíduos, desde as posições mais fundamentalistas do seu texto mais famoso de 1980, e aqui reproduzido, até uma certa aproximação às teses a favor dos direitos dos animais de Regan.

Marcos, Alfredo (2001). Ética ambiental. Valladolid: Universidad de Valladolid, pp. 134-6 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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