terça-feira, 18 de março de 2008

Richard Brandt, "Um princípio moral acerca de matar" (Parte I)

«Um dos Dez Mandamentos afirma: “Não matarás”. O mandamento não especifica nenhum objecto para o verbo, mas a visão católica tradicional tem defendido que o objecto próprio seria “seres humanos inocentes” (em caso de extrema necessidade), sendo “inocente” tomado no sentido em que se excluem pessoas condenadas a penas capitais ou envolvidas numa acção injusta com a finalidade de matar, como no caso das forças armadas de um país envolvidas numa guerra injusta. Assim considerado, supõe-se que a proibição se estenda ao suicídio e ao aborto. (Há uma especificação: que não se tenham em atenção casos em que a morte não seja desejada em si mesma ou encarada como um meio para um fim que é considerado em si mesmo, sendo certo que, em ambos os casos, o fim da acção será o de evitar um mal maior para a pessoa). Ora, será possível defender esta visão que considera todo o acto de matar seres humanos inocentes como moralmente reprovável, e se não for, que princípio alternativo poderá ser defendido?
Esta é uma questão decisiva que está longe de gerar consenso. Dar-me-ia por satisfeito se fosse possível identificar um princípio que pudesse ser demonstrado caber num sistema moral que qualquer pessoa racional e benevolente pudesse defender para uma sociedade em que aceitaria viver. Aparentemente haveria outros que não ficariam tão satisfeitos; então, no que se segue, tentarei simplesmente tecer algumas considerações que, espero, permitam identificar um princípio com o qual pessoas conscientes e inteligentes se possam sentir confortáveis. Acredito que o princípio que vou esboçar poderá pertencer ao sistema moral que pessoas racionais e benevolentes desejariam para a sua sociedade.
Comecemos pela reflexão sobre o que significa matar. O primeiro aspecto a considerar é que matar é um termo biológico. Por exemplo, uma videira pode ser morta por um produto químico. O verbo matar envolve essencialmente uma noção ampla de morte – a mudança do estado de estar biologicamente vivo para o estado de estar morto. Está além dos meus poderes fornecer qualquer caracterização genérica desta transição, e provavelmente é impossível arranjar uma. Mas se houver, será no sentido em que é partilhado pelos seres humanos, moscas, fetos; pelo que matar significará provocar essa transição. O segundo aspecto a considerar relaciona-se com o facto de nenhum ser humano viver para sempre, pelo que matar um ser humano num dado momento, pode entender-se como adiantar a data da sua morte, ou encurtar a sua vida. Pode então considerar-se que significa terminar com a vida de uma pessoa num tempo t em vez do fim desta ocorrer no tempo t + k. Matar será então encurtar o ciclo de vida de um qualquer organismo.
Há que considerar um terceiro aspecto sobre o termo matar. Este pertence a uma teoria causal da agência e tem as suas raízes na tradição legal. Como tal, envolve implicações. Por exemplo, suponha-se que empurro um bloco de pedras montanha abaixo com o intuito de acertar na pessoa X e que atinge de facto X, de tal forma que esta acaba por morrer com o impacto e não antes dele (nem sequer por causa de um súbito ataque cardíaco); neste caso, pode-se afirmar que matei X. Por outro lado, suponha-se que aviso Y que X está na cama com a sua mulher, e que Y apressa-se para o local, apanhando-os em flagrante, e acabando por dar um tiro fatal em X; neste caso, ainda que o decorrer do eventos da minha acção possa ser considerado como causa real da morte de X, tanto quanto a queda das pedras, não se poderá dizer que matei X. Felizmente, para o efeito de determinar princípios moralmente correctos, podemos deixar de lado estas dificuldades. Suponha-se que escolho entre os cursos de acção possíveis A ou B (em que uma ou o outra destas “acções” pode ser concebida simplesmente como inacção – por exemplo, não fazer o que sei será a única coisa que prevenirá a morte de alguém); então será suficiente se souber ou se possuir uma razão para pensar ser altamente provável, que, se fizer A, um estado do mundo, incluindo a morte de uma pessoa, verificar-se-á, ou que, se fizer B, um estado do mundo de um tipo diferente poderá ocorrer. Se houver um princípio moral que me diga neste caso se devo ou fazer A ou B, isso será tudo o que preciso. Pode suceder que um princípio moral me diga que nunca devo realizar acções do tipo A, pois se o fizer, provocarei sempre a morte de um qualquer ser humano, sobretudo se existe um curso de acção alternativo que posso realizar, de tal forma que, ao fazê-lo, tal não suceda.
Será oportuno reformular a tradicional visão católica sobre este assunto preservando o seu espírito e o seu desígnio (ainda que alguns filósofos discordem desta análise), e procurando ao mesmo tempo evitar algumas concepções vagas e mais apropriadas a um princípio sobre a culpabilidade moral de uma pessoa, do que a um princípio sobre aquilo a que ela está moralmente obrigada a fazer. A terminologia que estou a usar remonta, na literatura filosófica, a uma frase utilizada por W. D. Ross, embora a sua concepção seja bem familiar. A proposta alternativa é que existe prima facie uma forte obrigação de não matar seres humanos excepto em casos justificados de auto-defesa; no sentido em que é (prima facie) moralmente errado matar um ser humano, excepto em casos justificados de auto-defesa a não ser que exista prima facie uma obrigação moral mais forte para fazer alguma coisa que não possa ser realizada sem matar. (O termo inocente não pode ser agora omitido, uma vez que se uma pessoa não é inocente, pode existir uma obrigação moral mais forte, que pode apenas ser descartada matando-a; e esta alteração é para melhor uma vez que não é óbvio que não tenhamos prima facie a obrigação de evitar matar pessoas mesmo que elas não sejam inocentes.) O resultado desta formulação é que, por vezes, para decidir o que é moralmente correcto, temos que comparar o rigor de obrigações morais conflituantes – o que é uma tarefa enganadora; mas a outra formulação esconde, por um lado, o mesmo problema colocando-o noutro plano, por outro, conduz a implicações objectivas. (Considere-se uma implicação da formulação tradicional, supondo o exemplo de uma festa de espeleologistas numa gruta junto ao oceano. Descobre-se a certa altura que a maré está a encher e que rapidamente inundará a gruta e que se todos se afogarão, a menos que consigam fugir ao mesmo tempo. Infelizmente o primeiro homem a forçar a saída é demasiado gordo e acaba por tapá-la de forma inexorável, ficando com a cabeça dentro da gruta. Ora, em consequência, ou forçam a saída empurrando o homem gordo até rebentarem com ele, ou todos, incluindo o homem gordo, morrerão. A formulação tradicional conduz-nos à conclusão de que todos devem afogar-se.)
Consideremos então o princípio “Existe prima facie uma forte obrigação moral de não matar um ser humano excepto em caso justificável de auto-defesa”. Não acredito que queiramos aceitar este princípio sem mais considerações; com efeito, o seu estatuto não parece ser o de um princípio básico, mas uma derivação de princípios mais básicos. W. D. Ross elaborou uma lista contendo aqueles que considerava ser as obrigações morais essenciais; é notável que tenha assinalado como dever prima facie o de não provocar dano, mas não tenha incluído a obrigação de não matar. Isto é presumivelmente um equívoco. Pode ter pensado que matar um ser humano é sempre prejudicá-lo, pelo que acrescentar a obrigação de não matar seria redundante; mas pode igualmente ter pensado que matar pode não ser sempre prejudicial e que seria prima facie obrigatório não matar nos casos em que e porque ao fazê-lo, estaria a prejudicar um ser sensível.
O que poderia considerar-se uma morte não prejudicial? Se, por exemplo, depois de encontrar um gato que apesar de ter sido mutilado por vários cães, mas que ainda está vivo ainda que agonize de dor, me recompuser e acabar com o seu sofrimento, matando-o, não estaria a prejudicá-lo. Não prejudico um animal terminando com o seu sofrimento. Se alguém está a ser torturado e queimado até à morte e se sei que o seu desejo maior é ter uma morte misericordiosa, não o prejudico ao matá-lo; ter-lhe-ei feito um favor. Em geral, parece que não terei prejudicado uma pessoa se a tratei de acordo com os seus desejos estando ela absolutamente consciente, ou de um modo que seria indiferente ela estar inteiramente consciente. (Não creio que terminar com a vida de um feto no terceiro mês seja prejudicial; admito que esta posição requer discussão
[1].)
Considere-se um outro tipo de morte que não é prejudicial. Considere-se o caso de um ser humano que ficou inconsciente e que seguramente não recuperará a consciência. Está no hospital e vive apenas graças a dispendiosas medidas de suporte vital. Será que há prima facie uma obrigação moral forte de não retirar essas medidas e não dar passos positivos para terminar com a sua vida? Parece óbvio que, se está a ocupar a única máquina de hemodiálise que podia servir para salvar a vida de outra pessoa, que retornaria à sua vida normal em pouco tempo, seria errado não a ceder. Será que existe uma obrigação para continuar, ou para não terminar com a sua vida, se não houver uma obrigação conflituante? Penso que não, com a excepção seguinte, que coincide com o facto de estar para além do dano corporal. Também não existe a obrigação de não preservar a sua vida, digamos, para que os seus órgãos estejam disponíveis para quando forem necessários.»


[1] Veja-se o meu “The morality of abortion” in The Monist, 56, 1972), pp. 503-26; e na sua forma revista, no volume editado por R. L. Perkins.

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