terça-feira, 1 de abril de 2008

Isaiah Berlin, "Dois Conceitos de Liberdade" (Parte III)

«Em segundo lugar, tal doutrina é relativamente moderna. Não parece haver quase nenhuma discussão acerca da liberdade individual como um ideal político consciente (em oposição à sua existência real) no mundo antigo. Condorcet já observara que não havia a noção de direitos individuais nas concepções legais dos romanos e gregos; isso parece valer igualmente para os judeus, os chineses e todas as outras civilizações antigas que desde então vieram à luz[1]. O domínio desse ideal tem sido a excepção em vez da regra, mesmo na recente história do Ocidente. Nem a liberdade nesse sentido gerou com frequência um grito de união para as grandes massas da humanidade. O desejo de não ser coagido, de ser deixado em paz, tem sido uma marca de alta civilização tanto da parte dos indivíduos como das comunidades. O próprio senso de privacidade, da área das relações pessoais como algo sagrado pelos seus próprios méritos, provém de uma concepção de liberdade que, apesar de todas as suas raízes religiosas, é um pouco mais antiga, no seu estado desenvolvido, do que a Renascença ou a Reforma[2]. Mas o seu declínio marcaria a morte de uma civilização, de toda uma perspectiva moral.
A terceira característica dessa noção de liberdade é da maior importância. É que a liberdade nesse sentido não é incompatível com alguns tipos de autocracia ou pelo menos com a ausência de auto-governo. A liberdade nesse sentido preocupa-se principalmente com o campo do controlo, não com a sua fonte. Assim como a democracia é capaz realmente de privar o cidadão individual de muitas liberdades de que ele poderia gozar através de alguma outra forma de sociedade, assim é perfeitamente concebível que um déspota de mente liberal concedesse aos seus súbditos uma grande liberdade pessoal. O déspota que permite aos seus súbditos uma ampla liberdade pode ser injusto, encorajar as desigualdades mais loucas, pouco se importar com a ordem, a virtude ou o conhecimento; mas, desde que não reprima a liberdade dos súbditos, ou pelo menos a reprima menos que muitos outros regimes, ele satisfaz a especificação de Mill
[3]. A liberdade nesse sentido não está ligada, pelo menos do ponto de vista lógico, com a democracia ou o auto-governo. Em geral, o auto-governo pode fornecer uma melhor garantia da preservação das liberdades civis que os outros regimes e tem sido defendido como tal pelos libertários. Mas não há nenhuma ligação necessária entre a liberdade individual e a regra democrática. A resposta à pergunta "Quem me governa?" é logicamente distinta da que seria dada à pergunta “Até que ponto o governo interfere na minha vida?". É nessa diferença que reside afinal o grande contraste entre os dois conceitos de liberdade positiva e negativa[4]. Pois o sentido "positivo" de liberdade vem à luz se não tentamos responder à pergunta "O que tenho a liberdade de fazer ou ser?", mas à pergunta "Por quem sou governado?" ou "Quem deve dizer o que devo ou não devo ser ou fazer?". A ligação entre democracia e liberdade individual é muito mais ténue do que parecia a muitos advogados de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo, ou pelo menos de participar no processo que controla a minha vida, pode ser um desejo tão profundo quanto o de uma área livre para a acção e talvez historicamente mais antigo. Mas não é o desejo da mesma coisa. Tão diferente é, na verdade, que acabou por gerar o grande confronto de ideologias que domina o nosso mundo. Pois é isso, a concepção "positiva" de liberdade, não a libertação de mas a libertação para - levar uma forma prescrita de vida -, que os adeptos da noção "negativa" consideram, em certas ocasiões, nada mais do que um disfarce capcioso para uma tirania brutal.»


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[1] Ver a discussão valiosa sobre este ponto in Michel Villey, Leçons d’histoire de la philosophie du droit (Paris, 1957), que descobre o embrião da noção de direitos subjectivos em Occam.
[2] A crença cristã (e judaica ou muçulmana) na autoridade absoluta das leis divinas ou naturais, ou na igualdade de todos os homens perante Deus, é muito diferente da crença na liberdade de viver conforme se prefere.
[3] Na verdade, é defensável que na Prússia de Frederico, o Grande, ou na Áustria de Joseph II, os homens de imaginação, originalidade e génio criativo, e até minorias de todos os tipos, eram menos perseguidos e sentiam a pressão de forma menos pesada, tanto das instituições como do costume, do que em muitas democracias anteriores ou posteriores.
[4] A "liberdade negativa" é algo cuja extensão, num dado caso, é difícil de estimar. Poderia parecer, prima facie, que depende simplesmente do poder de escolher entre pelo menos duas alternativas. Ainda assim, nem todas as escolhas são igualmente livres, ou deveras livres. Se num Estado totalitário traio o meu amigo sob ameaça de tortura, talvez até por medo de perder o meu emprego, posso dizer razoavelmente que não agi com liberdade. Ainda assim, fiz com certeza uma escolha, pois poderia, pelo menos em teoria, ter optado por ser morto, torturado ou aprisionado. A mera existência de alternativas não é, portanto, o bastante para tornar a minha acção livre (embora possa ser voluntária) no sentido normal da palavra. A extensão da minha liberdade parece depender (a) de quantas possibilidades estão abertas para mim (ainda que o método de contá-Ias nunca possa ser mais do que impressionista; as possibilidades de acção não são entidades distintas como maçãs, que podem ser exaustivamente enumeradas); (b) da facilidade ou dificuldade de concretizar cada uma dessas possibilidades; (c) da importância que, dados o meu carácter e as circunstâncias, essas possibilidades têm no meu plano de vida, quando comparadas umas com as outras; (d) do grau da amplitude em que são fechadas e abertas por actos humanos deliberados; (e) do valor que não só o agente, mas também o sentimento geral da sociedade em que vive atribuem às várias possibilidades. Todas essas grandezas devem ser "integradas", e deve ser tirada uma conclusão desse processo, que necessariamente nunca é precisa ou indiscutível. Pode bem ser que haja muitos tipos e graus incomensuráveis de liberdade, e que eles não possam ser representados em nenhuma escala única de grandeza. Além disso, no caso das sociedades, somos confrontados com perguntas (logicamente absurdas) como "O arranjo X aumentaria a liberdade do sr. A mais do que as liberdades dos srs. B, C e D juntas, todas somadas?". Surgem as mesmas dificuldades quando se aplicam os critérios utilitários. Ainda assim, desde que não requeiramos uma medição precisa, podemos apresentar razões válidas para afirmar que o súbdito comum do rei da Suécia é no geral muito mais livre hoje [1958] do que o cidadão comum da Espanha ou Albânia. Os padrões totais da vida devem ser comparados directamente como conjuntos, embora o método pelo qual realizamos essa comparação e a verdade das conclusões sejam difíceis ou impossíveis de demonstrar. Mas o carácter vago dos conceitos e a multiplicidade dos critérios envolvidos são atributos do próprio tema, e não dos nossos métodos imperfeitos de medição ou da incapacidade para o pensamento preciso.

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