quarta-feira, 23 de abril de 2008

Robert Nozick, "Facto e valor" (Parte VII)

«A Escolha da Existência do Valor

O meu objectivo aqui não é o de seguir o comentário cultural, mas sim enunciar e delinear a quinta posição sobre os valores: escolhemos que existam valores, mas não o seu carácter.* Em que é que consiste a escolha de uma pessoa para que haja valores? Poucas pessoas dizem “deixemos que haja valores!” E de que modo o dizê-lo torna verdade que haja valor? A escolha de que haja valor é feita quando se valorizam coisas, quando se valorizam coisas como sendo importantes.
Talvez só durante este século tenha esta escolha sido feita em plena consciência do que constituía uma escolha, porém a própria escolha não é exclusiva desta época, tal como podemos verificar através dos fenómenos de depressão mental, encontrados em todos os períodos históricos e culturas, onde uma pessoa simplesmente (mas não só) deixa de atribuir valor às coisas. Uma pessoa deprimida não só escolhe deixar de ser afectada pelas condições exteriores – ela escolhe também o mundo que lhe corresponda e seja desprovido de valor. No caso de depressões mentais, o fosso entre facto e valor é psicologicamente real. Podem essas teorias filosóficas que tentam cobrir, suster ou ultrapassar este fosso dar o testemunho de valor de uma pessoa que sofre logicamente de depressão grave, fazendo derivar uma conclusão de valor a partir das premissas que ela aceita? Não será ir longe de mais se especularmos que todas essas teorias propostas até agora poderão falhar neste ponto. Embora o objectivo da filosofia não seja conceber algo ou alguém, a experiência de estados mentais poderia constituir um teste adequado para o pressuposto de que não existe qualquer cisão deste tipo.
Verá a pessoa que faz a escolha para a existência de valor o mundo numa perspectiva meramente valorável, assumindo uma perspectiva valorável do mundo? Devemos compará-la às figuras da gestalt que podem ser vistas de duas maneiras, a mulher idosa e a jovem rapariga, ao pato-coelho, ao vaso e às duas caras, ao cubo de Necker? Poderíamos ser levados a pensar que a pessoa que escolhe que existam valores acrescenta algo, que ela interpreta o mundo, enquanto que a pessoa que admite não existirem valores, apenas descreve o que existe de facto. No que respeita às figuras da gestalt, todos concordam que existem linhas e pontos de tinta; podemos olhá-las simplesmente como isso mesmo (e desta forma podemos vê-la de três maneiras). Todavia, esta não é a perspectiva da pessoa que nega a existência de valor, uma vez que acrescenta aos factos consensuais (sobre a unidade orgânica, por exemplo) a expressão de que “não existe valor”. Assim, de modo a continuar a analogia, a sua interpretação é uma das mais aceites correspondendo à da mulher idosa e da jovem rapariga, e não uma minimalista correspondendo a “linhas ou pontos de tinta”.
Neste sentido, será que existem apenas duas interpretações igualmente plausíveis, uma apoiando a existência do valor enquanto que a outra o rejeita, sendo que ambas são igualmente verdadeiras? A perspectiva que nega a existência do valor não pode exigir igual aceitação, uma vez que não reconhece qualquer noção de aceitabilidade na base da qual poderia ser considerada igual; contudo, poderia afirmar-se como “não sendo pior”, significando desse modo que não existe qualquer noção de “pior” de acordo com a qual seria qualificada numa posição inferior. Nesse caso, nenhuma destas interpretações perspectiva a outra como ocupando uma posição inferior à sua, e assim à sua própria maneira, (na melhor das hipóteses) faz sentido. Por outro lado, aparece a perspectiva segundo a qual o valor tem a capacidade de se colocar numa posição melhor do que a perspectiva que o nega. A perspectiva que nega a existência do valor alega ser verdade, mas não pode alegar que é melhor que seja verdade, ou que é melhor acreditar na verdade. Embora aqueles que negam o valor por vezes vejam a sua própria teimosia em não ceder àquilo que [consideram] ser a ilusão do valor como um acto valorável em si mesmo, esta satisfação não é legitimamente válida para eles.
Deixando de lado tais considerações dialécticas, será que nós, que escolhemos que existam valores, vemos a nossa avaliação do mundo e a nossa procura de valores apenas enquanto uma perspectiva, como um ponto de vista entre muitos outros? Caso contrário, julgamos ser verdade que exista valor, e é esta uma verdade que existe independentemente de tudo o resto, uma verdade à qual a nossa escolha para que haja valor parece corresponder, ou será ela criada ou trazida à existência pela tal escolha para que haja valor?
Ao valorizarmos as coisas, escolhemos ver o mundo como valorável, optamos para que haja valor. Ao atribuirmos valor às coisas, também o podemos fazer em relação à existência do valor, e quando avaliamos o próprio valor. A nossa escolha para que haja valor é ela própria considerada valorável de forma retrospectiva e retroactiva, de acordo com os resultados da escolha; o valor não só é escolhido como é também exemplificado no próprio acto de escolha. Todavia, falar de valor como existindo de forma retrospectiva e retroactiva poderá adulterar a situação. Uma vez que a escolha para que o valor exista poderia ser aplicada não (só) em retrospectiva mas, nessa altura, de modo reflexivo. A capacidade de reflexão ou referência, referência “do interior”, como mostramos no primeiro capítulo, envolve uma referência que tem em consideração a propriedade conferida no acto de referência, a referência a algo que possui essa propriedade (dada) que foi desse modo conferida. Podemos dizer que o objecto é referido como um resultado da referência reflexiva. De igual modo, a escolha para que exista valor é reflexiva quando escolhe que ele exista em virtude de uma propriedade conferida pelo próprio acto de escolha; a escolha para que haja valor resulta do próprio acto de escolha para que ele exista. No capítulo anterior analisámos como uma escolha que não é provocada podia ser livre e planeada; envolvendo uma avaliação reflexiva das razões ou do valor. Aqui vemos como a escolha para a existência de valor pode ser incluída nessa estrutura. A escolha para que haja valor e a escolha de seguir um valor são ambas pressupostas sob a escolha de valor V; e esta escolha pode ser um exemplo da linha de conduta quando se segue e valoriza o valor, uma linha de conduta que é causada de forma reflexiva e pressupõe essa mesma escolha.
Pode, deste modo, a escolha de que haja valor ser infundada (no sentido de se estabelecer uma teoria), ao invés de invocar um sentido de acordo com o qual uma referência reflexiva tem lugar, ou de invocar regras constitutivas de acordo com as quais actos ilocutórios e performativos poderiam ter lugar? Mesmo que o valor pudesse estar presente como resultado da escolha de que haja valor, podemos conferir um valor a algo em virtude de tal concessão reflexiva, a qual o concede apenas como algo que é concedido (de forma reflectida)? Estará esse valor de facto presente nesse processo?»

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