sábado, 12 de abril de 2008

Leon R. Kass, "A Sabedoria da Repugnância" (Parte V)

«Proibir a clonagem de humanos
Então o que devemos fazer? Devemos afirmar que a clonagem é em si mesma anti-ética e perigosa nas suas consequências possíveis. Ao fazê-lo, teremos o apoio da maioria esmagadora dos americanos, da espécie humana e (acredito) da maioria dos cientistas em actividade. Depois, devemos fazer tudo para impedir a clonagem de seres humanos. Se possível, devemos fazê-lo através de uma proibição legal internacional e no mínimo através de uma proibição nacional unilateral. Os cientistas podem tentar violar secretamente essa proibição, mas serão punidos por não serem capazes de reclamar publicamente os créditos pelos seus desafios e sucessos tecnológicos. Além do mais, a proibição da clonagem de bebés não prejudicará o progresso da ciência genética e da tecnologia Ao contrário, garantirá ao público que os cientistas estão contentes por poderem prosseguir com as suas investigações sem violar normas e intuições éticas centrais da comunidade humana.
Mas ainda assim permanece uma questão vexante sobre a investigação laboratorial que usa clones de embriões humanos jovens, sem qualquer intenção de os implantar num útero. Não há dúvida que tal investigação seja bastante promissora quanto a ganhos de conhecimento fundamental sobre a normal (ou anormal) diferenciação e para o desenvolvimento de sequências de tecidos que poderão vir ser usados em transplantes, digamos, no tratamento da leucemia ou na reparação de lesões no cérebro ou na espinal-medula – só para mencionar alguns dos benefícios possíveis. Ainda assim, a pesquisa irrestrita de clones de embriões tornará a produção de clones humanos vivos bastante mais provável. Logo que os génios coloquem os embriões clonados dentro da lâmpada, quem poderá garantir para onde irão, especialmente na ausência de proibição legal contra a sua implantação para produzir uma criança?
Aprecio os extraordinários ganhos potenciais do conhecimento científico e do tratamento médico disponível a partir da investigação de embriões. Ao mesmo tempo tenho sérias reservas relativamente à criação de embriões humanos para o fim estrito da experimentação. Há algo de profundamente repugnante e fundamentalmente transgressivo nesse tratamento utilitário da vida humana futura. Essa exploração total e vergonhosa é pior, na minha opinião, do que a “mera” destruição de uma vida humana nascente. Mas, em princípio, não vejo mais objecções à criação e ao uso de clones de embriões jovens para fins de investigação, para além das que posso levantar a uma utilização similar de embriões produzidos sexualmente.
E, contudo, por convicção e por prudência, penso que qualquer opositor da manufactura de seres humanos clonados deve, no final, opor-se também à criação de embriões humanos clonados. Clones embrionários congelados (pertencentes a quem?) podem circular sem serem detectados. Serão desenvolvidas empresas comerciais ligadas à clonagem humana sem supervisão. Para construirmos um muro em volta da lei, manda a prudência que nos oponhamos – por essa razão apenas – a toda a produção de embriões humanos clonados, mesmo que para fins de investigação. Devemos autorizar a continuação da clonagem de investigação em animais, mas suspeito que a única barreira aceitável que podemos construir para evitar o declive ardiloso seja continuar a insistir na inviolável distinção entre clonagem animal e humana.
É possível que alguns leitores e certamente a maioria dos cientistas não aceitem estas restrições prudentes, uma vez que desejam os benefícios da pesquisa. Embora receosos e trémulos, prefeririam autorizar o prosseguimento da pesquisa ao nível da clonagem de embriões humanos.
Muito bem. Vamos testá-los. Se os cientistas querem ser levados a sério em termos éticos, devem, pelo menos, concordar que a pesquisa de embriões pode prosseguir se, e só se, for precedida por uma absoluta e efectiva proibição de todas as tentativas de implantação de um embrião humano clonado (clonado de um adulto) num útero para produzir uma criança viva. Nenhuma autorização deve ser dada à primeira sem que se verifique a última.
As recomendações da Comissão Nacional de Aconselhamento Bioético relativamente a estas matérias, constituem um passo na direcção certa. Para o concretizar, a comissão decidiu sugerir a criação de legislação federal para impedir qualquer tentativa de produzir uma criança através da clonagem. Isto foi, confesso, mais do que estava à espera. Mas a base moral para a oposição da comissão à clonagem é, infelizmente, inferior ao expectável e ao necessário. Diz a comissão que a tentativa de clonar um ser é “moralmente inaceitável” “nesta altura” porque a técnica ainda não foi aperfeiçoada ao ponto de garantir um uso seguro. Por outras palavras, a comissão não oferece qualquer razão consensual para impedir a clonagem de um ser humano logo que esta venha a ser possível de realizar com baixo risco de dano físico para a criança resultante. Com efeito, a comissão insiste que, antecipando o aperfeiçoamento da tecnologia, “é crítico” que toda a proibição legal da produção de bebés através da clonagem “deve incluir uma cláusula final que assegure que o Congresso possa reexaminar a questão depois de um período de tempo especificado (três a cinco anos) para avaliar se tal proibição continua a ser necessária”. Embora identifique outras questões éticas (para além da questão da segurança), esta qualificada comissão não toma posição relativamente a qualquer um deles! Apenas diz que essas questões “exigem uma discussão pública mais ampla e cuidada antes que tal tecnologia possa ser usada” – mas não para decidir se tal tecnologia deve ser usada. A comissão quer assegurar, de forma relativista, apenas que tais questões éticas e sociais sejam regularmente revistas “à luz dos entendimentos públicos da altura”. Dificilmente poderá este tipo de oposição à clonagem servir de base a uma proibição durável.
Quase tão preocupante é o facto do relatório nada dizer sobre a questão vexante da clonagem de embriões humanos para fins de pesquisa. É claro que o silêncio não significa aprovação, mas também não significa proibição: dada a actual proibição do uso de fundos federais em qualquer tipo de investigação que envolva a criação de embriões humanos para experimentação, a comissão pode ter preferido evitar uma controvérsia desnecessária ao tratar essa questão. Para além disso, os elementos da comissão (sem dúvida a grande maioria) que são favoráveis a continuação das pesquisas de embriões clonados atingiram de facto os seus objectivos através do silêncio: tanto a moratória sobre os fundos federais como a proibição legal decidida pela comissão, estão confinadas apenas às tentativas de criar uma criança através da clonagem. A comissão sabe que a pesquisa de embriões está a progredir de forma vigorosa e rápida no sector privado, e a comissão compreende seguramente que o seu silêncio sobre o assunto – tal como o do Congresso – significa que a criação de clones de embriões humanos prosseguirá e talvez já esteja a prosseguir na privacidade dos laboratórios comerciais. Com efeito, o relatório espera e congratula-se tacitamente com a pesquisa de embriões humanos: por que outros meios poderemos vir a aperfeiçoar as técnicas de clonagem humana que exigiriam a reavaliação periódica de qualquer proibição legal?
No final, o relatório da comissão acaba por ser (apesar dos seus melhores esforços) um falhanço moral e prático. Moralmente, esta comissão ética vacilou na questão ética central ao recusar declarar anti-ética (ou ética) a produção de clones humanos. Do ponto de vista prático, a moratória e a proibição de bebés que foram decididas, embora acolham restrições temporárias, não justificam a necessidade de fornecer uma protecção sólida e duradoura contra a produção de seres humanos clonados. Pelo contrário, a débil posição ética da comissão pode dizer-se que acabou por enfraquecer a sua decisão limitada de restringir. Precisaremos de facto de uma lei federal apenas para proteger bebés não nascidos de qualquer dano físico?
É então necessário que os opositores da clonagem estejam vigilantes. Devem continuar a pressionar para que seja criada legislação que proíba de forma permanente a produção de bebés através da clonagem, e devem ser dados os passos necessários para tornar essa proibição efectiva.
A proposta de uma tal proibição não tem precedentes na América, pelo menos em termos tecnológicos, embora o Reino Unido e outros tenham proibido clonagem de seres humanos, e de nós próprios proibimos o incesto, a poligamia e outras formas de liberdade à reprodução”. Não será necessário dizer que, sem entrar em detalhes quanto a esta proibição, sobretudo se vier a ter uma natureza global, será complicada por causa da necessidade de desenvolver sanções apropriadas para os violadores. Talvez esta proibição se venha a revelar ineficaz; talvez se venha apenas a revelar um erro. Mas pelo menos colocará o ónus da prova onde é devido: do lado dos defensores deste horror, pedindo-lhes que mostrem de forma clara qual o grande bem social e médico que só pode ser alcançado através da clonagem de seres humanos.
Nós Americanos temos vivido, e prosperado, sob o optimismo rosado do progresso científico e tecnológico. É bem provável que o imperativo tecnológico – se é possível fazer, deve ser feito – nos tenha servido bem, embora tenhamos que admitir que não há forma objectiva de calcular os benefícios e os custos. Mesmo quando, como no caso da poluição ambiental, da decadência urbana, ou das mortes constantes que são efeitos secundários não intencionados dos sucessos médicos, reconhecemos os resultados indesejados do avanço tecnológico, continuamos confiantes na nossa capacidade para resolver todas as “más” consequências – habitualmente por intermédio de novas e melhores tecnologias. Quão afortunados continuaremos a ser neste post hoc reparador é, no mínimo, uma questão em aberto. Mas há boas razões para mudar completamente de paradigma, pelo menos no que diz respeito a essas intervenções tecnológicas no corpo e na mente humana que provocarão efeitos fundamentais (e provavelmente irreversíveis) na natureza humana, nas relações humanas básicas e no que significa ser humano. Não devemos estar dispostos a arriscar tudo na esperança ingénua que, se as coisas correrem mal, podemos depois consertá-las.
A decisão do presidente de criar uma moratória para a clonagem humana constitui uma oportunidade decisiva. De uma forma verdadeiramente sem precedentes, podemos desferir um golpe a favor do controlo humano do projecto tecnológico, da sabedoria, da prudência e da dignidade humana. A perspectiva da clonagem humana, tão repulsiva de contemplar, é a ocasião de decidir se seremos escravos do progresso desregulado, e os seus derradeiros artefactos, ou se permaneceremos seres humanos livres de apontar a nossa técnica para o aperfeiçoamento da dignidade humana. Se estivermos à altura do momento, devemos, como escreveu o falecido Paul Ramsey, colocar as questões éticas através de uma consciência séria e não frívola. Um homem com uma consciência frívola declara que há dilemas éticos à nossa frente que devemos considerar urgentemente antes que o futuro nos escape. Isto significa frequentemente que precisamos formular novas questões éticas que providenciarão a racionalidade para os homens fazerem no futuro o que devem porque novas acções e intervenções da ciência virão a ser possíveis. Em contraste, um homem de consciência séria significa que coloca problemas éticos urgentes que mostram que há coisas que o homem nunca deve fazer. As coisas boas que os homens podem fazer só podem em absoluto ser feitas através daquilo que eles se recusam fazer

Leon R. Kass, “The Wisdom of Repugnance”, in Olen, Jeffrey & Barry, Vincent (2002). Applying Ethics. A text with readings. Belmont: Wadsworth, pp. 275-87 (traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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