quinta-feira, 15 de maio de 2008

Allen Buchanan et al “Por que não o melhor?” (Parte VI)

«Danos, benefícios e capacidades de valor geral

No capítulo 6 analisamos muitos exemplos incontroversos de condições prejudiciais para os filhos. Por que será que os efeitos das melhorias dos filhos parecem eticamente mais problemáticas do que os dos tratamentos, que as medidas para proporcionar benefícios ou bens a um filho parecem eticamente mais controversas que as medidas para prevenir o dano? Por que será que o que parece um benefício para alguém apareça como mais controverso do que o que se considera prejudicial para essa mesma pessoa? Em geral e sem controvérsias, considera-se prejudicial a perda da visão ou da audição, ou a capacidade de mover os membros, mas mais controverso ainda o alcance da habilidade para tocar um instrumento musical ou a notoriedade num desporto um benefício.

Em primeiro lugar, deveríamos salientar que não é completamente indiscutível que cada uma destas situações prejudiciais seja de facto um dano. Segundo alguns pontos de vista manifestados pelos movimentos a favor dos direitos das pessoas com deficiência, a perda da audição não é um dano indiscutível e não produz necessariamente uma deficiência. Alguns grupos salientam a cultura dos surdos, a riqueza da linguagem gestual, e insistem no facto de se dever considerar os surdos como pessoas com “capacidades diferentes”, e não como “deficientes”. Os grupos a favor dos direitos das pessoas com deficiência têm sido muito importantes para obrigar o público em geral a reconhecer as capacidades que possuem estas pessoas com deficiência, bem como as formas que produzem para realizar adaptações que eliminem boa parte ou até todas as desvantagens que de outra forma provocariam as deficiências.

Num grau significativo, por as deficiências comportarem a medida da desvantagem que frequentemente provocam (…) deve-se a o facto da sociedade estar, em geral, estruturada e ordenada para as necessidades e os interesses das pessoas com “capacidades normais”. Contudo, apesar dessas advertências, considera-se amplamente que a perda de uma capacidade como a visão seja indiscutivelmente encarada como um dano, ainda que muitos benefícios não sejam igualmente indiscutíveis. A que se deve isso?

Pode considerar-se que a capacidade de visão humana é um meio de valor geral, útil e valioso para levar a cabo quase todos os planos de vida ou objectivos que os seres humanos normalmente têm. Não é apenas um “bem” segundo um ponto de vista ou um plano de vida distintos que uns podem adoptar e outros rejeitar. Pelo contrário, há poucas perspectivas a partir das quais a perda da visão não constitua um dano, e poucas perspectivas segundo as quais ver não seja um benefício para levar a cabo o plano de vida que uma pessoa tenha adoptado. Pode considerar-se um “bem natural primário”, análogo ao que John Rawls (1971) denominou de “bens sociais primários”, e em ambos os casos meios “de propósito geral” úteis ou valiosos para levar a cabo quase todos os planos de vida.

Não se quer com isto negar que os indivíduos que perdem a visão possam compensar ou ajustar os seus planos de forma que continuem a desfrutar de uma vida satisfatória e valiosa, mesmo que a perda da visão possa tornar possíveis novos bens, tais como a experiência da vida interior rica dos cegos. Mas, como poucas, a perda de uma capacidade de valor geral como a visão diminui significativamente a gama de planos de vida que os seres humanos valorizam e escolhem, tornando mais difícil a sua concretização.

Contudo, nem todos os danos sofridos pelas pessoas constituem uma perda de capacidades naturais valiosas de valor geral. Alguns são apenas danos segundo o ponto de vista de um plano de vida particular. E, o que é mais importante, a importância ou gravidade relativa de muitos danos para as pessoas só pode ser determinada a partir da perspectiva ou plano de vida integrais do indivíduo específico em causa, e não a partir de uma perspectiva mais geral e compartilhada. Por exemplo, a perda das capacidades motoras finas numa mão pode ser demolidora para um músico para quem essas capacidades sejam insubstituíveis, embora a perda dessas mesmas capacidades seja bastante menos grave para uma pessoa cujo trabalho e outras actividades impliquem em grande medida mentais e cognitivas e não a utilização de capacidades motoras finas. Mas esta não é uma comparação entre danos e benefícios, mas entre meios de propósito geral, por um lado, cuja posse é um bem e cuja perda é um dano para quase todos os planos de vida, e, por outro, capacidades específicas ou capacidades cujo valor e importância dependem de um plano de vida particular da pessoa concreta que as possui ou perde.

Há melhorias de capacidades e habilidades que são de maneira tão verosímil um benefício segundo quase todas as perspectivas valorativas, da mesma forma que seria um dano a perda comparável de capacidades e habilidades. Por exemplo, um aumento bastante substancial da capacidade de memória dos seres humanos normais seria também um benefício de propósito geral se melhorasse a capacidade das pessoas para prosseguir quase todos os planos de vida. (Suponha-se que o aumento de memória está funcionalmente integrado noutras capacidades cognitivas, como a memória normal, e não interfere nem se intromete, por exemplo, com outras funções ou capacidades.) A importância relativa do benefício poderia diferir significativamente considerados os diferentes planos de vida, o mesmo sucedendo com a importância relativa de um dano como a perda da audição ou da visão.

Por conseguinte, não há um contraste sistemático entre danos e benefícios relativamente aos quais o que constitua um dano seja indiscutível e objectivo considerada a perspectiva de qualquer plano de vida, e o que constitua um benefício seja controverso e subjectivo, e benéfico apenas segundo a perspectiva de tais planos de vida. Pelo contrário, há tantos benefícios como danos que são indiscutíveis porque são meios ou impedimentos de carácter geral para quase todos os planos de vida; e há tantos benefícios como danos cujo valor e ausência de valor, e especificamente cujo valor ou falta de valor relativos, dependem do plano de vida particular da pessoa em questão. Portanto, os danos e os benefícios não diferem sistematicamente de tal modo que as manipulações genéticas para melhorar os filhos acabem por ser eticamente problemáticas ou controversas, embora manipulações genéticas similares para o tratamento de uma doença ou condição genética prejudicial sejam eticamente inquestionáveis ou indiscutíveis.

Há a sensação de que a doença, entendida como desvio adverso relativamente ao funcionamento normal da espécie, seja uma condição que acaba por ser, pelo menos prima facie, má para qualquer pessoa que a experimente, ainda que isso seja compatível com o facto de uma doença não ser, em igualdade de circunstâncias, má para uma pessoa determinada em circunstâncias particulares. Assim, a manipulação genética para o tratamento de uma doença pode entender-se como sendo prima facie benéfica para qualquer indivíduo que padeça de tal doença. Uma limitação da manipulação genética para tratar ou prevenir doenças específicas fornece limites mais objectivos para o uso das manipulações, embora isso se deva apenas em parte ao facto de se considerar doenças apenas aquelas que sejam em geral prejudiciais.

Por outro lado, o uso das manipulações genéticas por parte dos pais para que os seus filhos venham a ser os “melhores possíveis”, quando isso já não estiver limitado pela herança genética dada aos filhos, será mais aberto e basear-se-á nas concepções concretas e, por vezes, idiossincráticas que os pais possam ter relativamente ao que seria melhor para os seus filhos. (Claro que as manipulações ambientais para promover o melhor também se podem basear em concepções igualmente idiossincráticas ou enviesadas.)

No capítulo 2 referiu-se que os antigos eugenistas foram criticados, com certa razão, por não levar o pluralismo a sério. Uma característica fundamental da filosofia política liberal é o facto de não aceitar um pluralismo irredutível e permanente entre os seus cidadãos relativamente a valores concretos e integrais, e a concepções de vida boa (Cfr. Rawls, 1993). O respeito por este pluralismo irredutível sobre o bem é uma base de compromisso liberal para estabelecer a neutralidade entre diferentes concepções do que seja a vida boa.

Apesar de muitos terem defendido com bastante razão que não é possível estabelecer uma postura bastante firme de completa neutralidade entre diferentes concepções de vida boa em todas as acções e políticas do estado, há que distinguir ao grau de neutralidade que os estados liberais, ao contrário dos não-liberais, procuram alcançar. Esta neutralidade limita precisamente as melhorias que um estado liberal deve assumir.

Haverá alguma razão para esperar dos pais um certo grau de neutralidade entre diferentes concepções do bem para modelar e criar os seus filhos? Essa razão teria que ser diferente das razões em que se baseia a própria neutralidade do estado liberal, tal como a autoridade coerciva reivindicada pelo Estado sobre os seus cidadãos e a sua responsabilidade para promover a tolerância se distinguem da família e das relações entre pais e filhos. Se houvesse alguma razão para esperar um grau de neutralidade dos pais relativamente a diferentes concepções do bem, esta poderia assentar em parte na preocupação de que alguns utilizassem a manipulação genética para fazer filhos aceitáveis para certa concepção particular e idiossincrática de vida boa que os pais eventualmente possuíssem.»

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