quinta-feira, 22 de maio de 2008

Elliot Sober, "Egoísmo Psicológico"

«O egoísmo psicológico é uma teoria da motivação que afirma que todos os nossos desejos últimos são auto-dirigidos. Sempre que queremos que os outros se saiam bem (ou mal), temos esses desejos dirigidos para os outros apenas instrumentalmente; preocupamo-nos com os outros apenas porque pensamos que o seu bem-estar influenciará o nosso próprio bem-estar. Como afirmei, o egoísmo é uma teoria descritiva, não é normativa. Procura caracterizar o que de facto motiva os seres humanos, mas nada diz sobre se essa motivação é certa ou errada.

O egoísmo tem exercido uma enorme influência nas ciências sociais e tem penetrado de forma ampla no pensamento das pessoas comuns. Os economistas pensam tipicamente que os seres humanos são movidos por “um interesse próprio racional”, o que excluí qualquer preocupação redutível ao bem-estar dos outros. Qualquer pessoa comum afirma frequentemente que as pessoas ajudam os outros, porque isso fá-las sentir bem com elas próprias ou porque procuram a aprovação de terceiros.

É fácil inventar explicações egoístas mesmo para os actos de auto-sacríficio mais horrendos. O soldado na trincheira que se faz rebentar junto com uma granada para salvar a vida dos seus camaradas, é um lugar-comum na literatura sobre o egoísmo. Como pode esse acto resultar do interesse próprio se o soldado sabe que acabará com a sua vida? O egoísta pode responder que o soldado percebe nesse instante que prefere morrer a sofrer a culpa que o perseguiria para sempre se se salvasse a si próprio e deixasse que os seus amigos morressem. O soldado prefere morrer e nada mais sentir, a viver e sofrer os tormentos dos condenados. Esta resposta pode parecer forçada, mas ainda está por determinar a razão por que a devemos considerar falsa.

As críticas que têm surgido contra o egoísmo podem ser divididas em três categorias. Primeiro, existe a tese de que não é genuinamente uma teoria. Segundo, há a alegação de que se trata de uma teoria que é refutada pelo que observamos no comportamento humano. Terceiro, existe a ideia de que, embora o egoísmo seja uma teoria consistente com o que observamos, existem outras considerações que não são evidentes que sugerem que deve ser rejeitada em favor de uma teoria alternativa, o pluralismo motivacional, segundo a qual os seres humanos possuem desejos últimos egoístas e altruístas.

Clarificando o Egoísmo
“Quando o egoísmo afirma que todos os nossos desejos últimos são auto-dirigidos, o que singifica “últimos” e “auto-dirigidos”?

Existem algumas coisas que queremos para o nosso próprio bem; queremos outras apenas porque pensamos que nos vão trazer ganhos secundários. A relação familiar meios/fim que liga um desejo a outro também permite que os desejos se encadeiem – a Sara pode querer guiar o seu carro porque quer ir à padaria, e pode querer ir à padaria porque quer comprar pão, etc. A relação crucial que devemos definir é a seguinte:

S quer m apenas como meio para atingir e se e só se S quer m, S quer e, e S quer m apenas porque acredita que ao obter m isso a ajudará a obter e.

Um desejo último é simplesmente um desejo que alguém possui como razão para ir além da sua capacidade de contribuir instrumentalmente para a obtenção de outra coisa qualquer. Considere-se a dor. A razão mais óbvia para que as pessoas evitem a dor é simplesmente o facto de não gostarem de sentir dor. Evitar a dor é um dos nossos objectivos últimos. Contudo, bastantes pessoas percebem que a sensação de dor reduz a sua capacidade de concentração, pelo que podem, por vezes, tomar uma aspirina em parte porque querem remover o que provoca distração. Isto mostra que as coisas que queremos como fins em si mesmas também as podemos querer por razões instrumentais.

Quando o egoísmo psicológico procura explicar por que razão uma pessoa ajuda outra, não basta mostrar que uma das razões para ajudar é auto-beneficiente, porque isso é bastante consistente com o facto de haver outra razão para ajudar que seja puramente altruísta. Simetricamente, para refutar o egoísmo não é necessário dar exemplos de ajuda em que apenas existam motivos dirigidos aos outros. S,e por vezes, as pessoas ajudam os outros por razões últimas que são tanto egoístas como altruístas, então o egoísmo psicológico é falso.

Tanto o egoísmo como o altruísmo requerem a distinção entre desejos auto-dirigidos e desejos dirigidos aos outros. Esta distinção deve ser entendida em termos de conteúdo proposicional do desejo. Se Adão quer uma maça, será redundante afirmar que Adão quer que seja o caso que tenha a maça. Este desejo é puramente auto-dirigido, já que o seu conteúdo proposicional contém referências a Adão e a nenhum outro agente; assumo que Adão não vê a maça como um agente. Pelo contrário, quando Eva quer que Adão tenha a maça, esse desejo é puramente dirigido ao outro; o seu conteúdo proposicional refere-se a outra pessoa, ao Adão e não à Eva. O egoísmo afirma que todos os nossos desejos últimos são auto-dirigidos; e o altruísmo afirma que alguns são dirigidos aos outros. O facto de Eva ter um desejo dirigido ao outro não é suficiente para refutar o egoísmo; devemos perguntar qual a razão que leva Eva a querer que Adão tenha a maça.

Um versão especial de egoísmo é o hedonismo psicológico. O hedonista diz que os únicos desejos últimos que as pessoas têm são procurar o prazer e evitar a dor. Por vezes, o hedonismo é criticado por defender que o prazer é o único tipo de sensação – que o prazer que retiramos do sabor de um pêssego ou o prazer que retiramos de ver prosperar aqueles que amamos, de alguma forma se resumem ao mesmo (…). Contudo, esta crítica não se aplica ao hedonismo tal como o descrevi. O facto óbvio acerca desta teoria é a pretensão de que as pessoas são solipsistas motivacionais, quer dizer, as únicas coisas com que se preocupam são os seus próprios estados de consciência. Os egoístas não precisam ser hedonistas. Se as pessoas desejam a sua própria sobrevivência como um fim em si mesmo, podem ser egoístas, mas não são hedonistas.

Há desejos que não são nem puramente auto-dirigidos nem puramente dirigidos aos outros. Se a Filipa quer ser famosa, isso que dizer que quer que os outros saibam quem ela é. O conteúdo porposicional desse desejo envolve uma relação entre ela e os outros. Se a Filipa procura fama apenas porque pensa que será prazeroso ou lucrativo, então ela pode ser egoísta (dependendo de quais sejam os seus desejos últimos). Mas e se ela quiser ser famosa como um fim em si mesmo? Ora, não há razão para incluir essa possibilidade no egoísmo ou no altruísmo; incluir no egoísmo alguns desejos relacionais últimos, mas não incluir outros, corre o risco de tornar a teoria ad hoc ou confusa (…); o mesmo se aplica ao altruísmo. Então reconheçamos o relacionismo como uma possibilidade distinta para ambos.

A quarta possibilidade envolve desejos que não se dirigem nem ao próprio nem aos outros. O desejo de que algum princípio moral geral seja defendido cai nesta categoria. Quando um utilitarista deseja a maximização do bem para o maior número, esse desejo é impessoal; cobre todos os seres sencientes, incluindo, presumivelmente, ele próprio, mas o conteúdo do desejo não o especifica nem a si nem aos outros. Por essa razão, sugiro que não se considere egoísta ou altruísta. Tal como era verdade relativamente aos desejos relacionais, os defensores do egoísmo psicológico podem assegurar que há desejos relativos à maioria dos princípios morais que não são auto-dirigidos; a questão é saber se temos estes desejos instrumentalmente ou então se os temos como fins em si mesmos.

Caracterizado como sugeri, é óbvio que o egoísmo não está implicado pelo truismo de que as pessoas agem com base nos seus próprios desejos, nem pelo truismo de que procuram satisfazer os seus próprios desejos. O facto do João agir com base nos seus desejos e não com base nos desejos do Joaquim, diz-nos apenas que desejos são relevantes; mas nada nos diz sobre se os desejos últimos que estão na cabeça do João são ou não auto-dirigidos. E o facto de o João querer satisfazer os seus desejos significa apenas que ele quer que o seu conteúdo proposicional seja verdadeiro; o desejo do João de que chova amanhã será satisfeito se e só se chover amanhã (…). Se chover, o desejo será satisfeito, independentemente do João o saber. Querer que os nossos desejos sejam satisfeitos não é o mesmo que querer sentir a satisfação que, por vezes, acompanha a realização de um desejo.

O egoísmo é às vezes ciriticado por considerar demasiado calculistas actos espontâneos de beneficiência. As pessoas que ajudam os outros em situações de emergência frequentemente afirmam que o fizeram “sem pensar” (…). Contudo, é difícil considerar literalmente estes relatos quando os actos envolvem uma série precisa de acções complexas ajustadas ao fim aparente. Um nadador-salvador que resgata um nadador aflito é justamente visto como alguém capaz de definir claramente um objectivo e de identificar um conjunto de acções ajustadas a esse objectivo. O facto de não se envolver em cálculos ponderados e conscientes, não prova a não ocorrência de um raciocínio meios/fim. Em qualquer caso, as acções acontecem de facto sem que a mediação dos desejos e crenças caia fora do âmbito do egoísmo e do altruísmo. As pessoas movem as pernas quando se toca nos seus joelhos com um martelo, mas isso não refuta qualquer teoria.

Uma crítica afim é a de que o egoísmo assume que as pessoas são mais racionais do que o que realmente são. Contudo, lembram que o egoísmo é apenas uma teoria acerca dos desejos últimos das pessoas. Como tal, nada nos diz sobre o modo como decidem agir com base nas suas crenças e desejos. Os teóricos que assumem que o egoísmo é verdadeiro também assumem que as pessoas são calculistas racionais; contudo, não estão condenadas pelo princípio da culpa associado.

Se o egoísmo defende que os desejos últimos são auto-dirigidos, o que dizer daquela pessoa cujo desejo último é de auto-destruição? E se o altruísmo defende que alguns desejos últimos são dirigidos aos outros, o que dizer de Iago cujo desejo último é destruir Otelo? Será grosseiro dizer que uma pessoa deprimida, que está empenhada em suicidar-se é egoísta, ou que Iago é altruísta. O que precisamos adicionar a ambas as teorias é a ideia do que é bom (ou aparentemente bom). Os egoístas procuram o seu próprio benefício; os altruístas querem que os outros se saiam bem. Apesar destes acréscimos às teorias as aproximar mais do uso comum dos termos “egoísmo” e “altruísmo”, els não afectam materialmente a tarefa substantiva de determinar que teoria é verdadeira. O cerne do problema é dizer se todos os desejos últimos são auto-dirigidos.

Alguns leitores podem considerar este problema fácil. Os indivíduos podem apenas fixar as suas mentes e determinar por introspecção quais são os seus desejos últimos. Talvez os defensores do egoísmo e os defensores do pluralismo motivacional estejam certos acerca deles próprios, só que ambos os lados pecam quando procuram generalizar para além dos seus próprios casos. Uma pressuposição que está implícita nas explorações filosóficas e psicológicas deste tópico, é que as pessoas são bsicamente idênticas. Se o egoísmo for falso, será falso para praticamente todos (exceptuando talvez os sociopatas). E se for verdadeiro, sê-lo-á por descrever uma característica básica do ser humano.

Contudo, o facto dos trabalhos anteriores de filosofia e de psicologia terem ignorado com frequência a possibilidade da variação individual, não é razão para incluir isso na nossa compreensão.do problema. Qual é então a razão por que não devemos dizer que os defensores do egoísmo e do altruísmo conhecem os seus corações? O facto de não haver uma razão indepentemente para pensar que o testemunho da introspecção deve ser fiável nesta circunstância. A introspecção é enganadora e incompleta no que nos diz sobre as diversas faces da nossa mente; ninguém ainda mostrou por que razão a mente deve ser um livro aberto relativamente à questão dos motivos últimos. O problema, se puder ser resolvido, deve-o ser de uma outra forma.”

Será o egoísmo empiricamente testável?
“Uma objecção filosófica tradicional apresentada ao egoísmo é que não é uma hipótese empiricamente testável. Tal como sugere o exemplo do soldado na trincheira, parece que o egoísmo pode incluir e explicar qualquer tipo de comportamento das pessoas, sejam elas boas ou más umas para as outras. A tese da flexibilidade do egoísmo relaciona-se com o critério popperiano quanto ao que se pode considerar como teoria científica, e conduz à conclusão que não pode ser genuinamente uma teoria científica. Apesar das aparências, isso é empiricamente vago.

Este argumento é fraco em dois sentidos. O primeiro diz respeito à confiança total em que nenhuma observação empírica poderá alguma vez refutar o egoísmo. O facto de a teoria poder incluir o exemplo do soldado na trincheira bem como outros comportamentos que têm sido considerados pelos filósofos, dificilmente basta para justificar esta tese global. Como acontece, o trabalho experimental desenvolvido pela psicologia social sobre o altruísmo e o egoísmo mostra que as provas empíricas relevantes vão para além da existência de instâncias de comportamento beneficiente (…). Por outro lado, a posição de Duhem sobre o facto de as teorias científicas serem testáveis apenas em conjunto com os pressupostos básicos, deve levar-nos a recuar na acusação de não-testabilidade. Se duas teorias fazem o mesmo tipo de previsões relativamente ao seu próprio conjunto de pressupostos básicos, então podem fazer previsões diferentes uma contra a outra. Como podemos saber que não se desenvolverá um novo conjunto de teorias que permita testar o egoísmo? A acusação de não-testabilidade pressupõe que temos uma compreensão omnisciente sobre futuro da ciência.

O segundo defeito deste argumento é que ignora que a acusação de não-testabilidade é uma faca de dois gumes. O argumento é apresentado como razão para rejeitar o egoísmo. Se é assim, então o que devemos aceitar como explicação efectiva para a motivação? Presumivelmente devemos aceitar o pluralismo motivacional como alternativa viável. Contudo, não é possível que seja este o resultado do argumento. Se o egoísmo não é testável, o mesmo acontece com o pluralismo motivacional. Se a flexibilidade do egoísmo permite incluir todas as observações, então o pluralismo motivacional é ainda mais flexível. Afinal o pluralismo utiliza todas as variáveis do egoísmo e mais algumas. As duas teorias relacionam-se entre si a mesma maneira que “y = f (x)” e “y = g (x,w)” estão relacionados.

A razão pela qual o egoísmo parece não ser testável é porque é um ismo. Não fornece explicações específicas para o comportamento, apenas indica o tipo de explicação que todos os comportamentos possuem. É isto que permite que se continue a aceitar o egoísmo mesmo quando explicações egoístas concretas se revelam inadequadas. Por que razão terá o Jorge doado todo o seu dinheiro a uma instituição de caridade? Um defensor do egoísmo pode sugerir que o Jorge agiu dessa forma, porque queria impressionar os outros e, dessa forma, aumentar os seus contactos comerciais. Contudo, suponha-se que ficamos a saber que a doação do Jorge tinha sido anónima. Isso refuta a explicação egoísta atrás descrita, mas não é difícil inventar outra. O Jorge fez essa doação porque isso fê-lo sentir bem e porque sabia que, se não o fizesse, sentiria remorsos. O padrão é típico – o hedonismo é a posição em que os egoístas tradicionais se refugiam. Se os benefícios externos não forem suficientes para explicar, então invocam-se benefícios internos, isto é, psicológicos.

Que o egoísmo é uma teoria sobre um tipo de explicação, e que, por isso, difere das explicações concretas por ele exigidas, é um padrão que surge em bastantes discussões sobre os ismos. Considere-se o adaptacionimso na biologia evolucionária. Os adaptacionistas enfatizam a importância da selecção natural ao explicar os traços observados nos organismos. Ainda que este ismo, por si próprio, não forneça uma explicação concreta para qualquer traço, continua a ser possível que um biólogo continue a ser adaptacionista mesmo quando uma explicação concreta desse tipo se revela inadequada. Por que razão apareceram asas pequenas nos insectos? A hipótese explicativa de que resultam de uma adaptação necessária para voar é questionada pelo facto de asas pequenas não permitirem sequer levantar vôo; ainda que 5% de um olho permita que este continue a funcionar como censor de luz, 5% de asa não serve sequer para levantar um insecto do chão. Contudo, pequenas asas são encontradas em algumas espécies de insectos que não voam e que funcionam como reguladores térmicos. Isto sugere uma hipótese alternativa – que as asas dos insectos começaram por evoluir por promoverem a regulação térmica e depois continuaram a evoluir porque facilitavam o vôo. Mas se esta hipótese for novamente desafiada, o adaptacionista pode desenvolver uma terceira hipótese. Não é bom rejeitar o adaptacionismo por causa deste tipo de flexibilidade; o ismo alternativo, o pluralismo evolucionário, defende que a selecção natural é apenas uma de entre diversas causas importantes da evolução. Se o adaptacionismo é flexível, então o pluralimso é-o ainda mais.»

Sober, Elliot, “Psychological egoism” in LaFollette, Hugh (ed.) (2000). The Blackwell Guide to Ethical Theory. Oxford: Blackwell Publishing, pp. 128-34 (Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira)

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