quinta-feira, 1 de maio de 2008

Iris Marion Young, “Imparcialidade e o Cívico Público. Algumas implicações das críticas feministas para a teoria moral e política” (Parte III)

«2. A unidade do cívico público

A dicotomia entre razão e desejo mostra-se na teoria política moderna na distinção, por um lado, entre o âmbito político, universal, da soberania e do Estado, e por outro, no âmbito do privado, do particular, das necessidades e dos desejos. A teoria política normativa moderna e a prática política procuram incorporar a imparcialidade no âmbito público do Estado. Da mesma forma que a imparcialidade da razão moral, este âmbito público do Estado alcança a sua generalidade pela exclusão da particularidade, do desejo, do sentimento e daqueles aspectos da vida que estão associados com o corpo. Na teoria e na prática política modernas, o público alcança uma unidade em particular pela exclusão das mulheres e de outras pessoas que são associadas à natureza e ao corpo.
Como Richard Sennet e outros escreveram, os centros urbanos, que se encontravam em processo de desenvolvimento no século XVIII, engendraram uma vida pública única[1]. À medida que o comércio aumentava e mais pessoas chegavam à cidade, o mesmo espaço da cidade foi mudando para contribuir para uma maior abertura, formando-se enormes avenidas nas quais as pessoas de diferentes classes se misturavam nos mesmos espaços[2]. Como Habermas defendeu, uma das funções desta vida pública a partir da segunda metade do século XIX foi proporcionar um espaço crítico em que as pessoas discutiam e criticavam os assuntos de Estado na multiplicidade dos jornais, cafés e outros fóruns[3]. Embora dominadas pelos burgueses, as discussões públicas dos cafés admitiam homens de todas as classes em igualdade de circunstâncias[4]. Além disso, mediante a instituição dos salões, assim como a assistência ao teatro e à pertença a sociedades de leitura, as mulheres aristocráticas e burguesas participavam nessas discussões públicas e ocasionalmente tomavam a dianteira[5].
Durante esse período, a vida pública parecia desenfreada, lúdica e sexualmente provocadora. O teatro era um centro social, um fórum onde o engenho e a sátira criticavam o Estado e os costumes dominantes. Até certo ponto, este público desenfreado misturava sexos e classes, misturava o discurso sério com o teatro e misturava o estético com o político, mas não sobreviveu à filosofia republicana. A ideia do Estado universalista que expressa um ponto de vista imparcial que transcende qualquer interesse particular é em parte uma reacção ante um público diferenciado. Os republicanos baseavam este Estado universalista na ideia do cívico público institucionalizada pela teoria e a prática políticas nos finais de século XVIII na Europa e nos Estados Unidos, para suprimir a heterogeneidade dos povos e línguas do público urbano. Esta institucionalização reordenou a vida social segundo uma estrita divisão do público e do privado. A filosofia política de Rousseau é o paradigma deste ideal do cívico público. Desenvolve a sua concepção da política precisamente como reacção à sua experiência do público urbano no século XVIII
[6], e também como reacção às premissas e conclusões da teoria atomista e individualista do Estado expressa por Hobbes. O cívico público expressa o ponto de vista universal e imparcial da razão, que se opõe, expulsando-os, ao desejo, ao sentimento e à particularidade das necessidades e interesses. Se partimos das premissas do desejo e da necessidade individual não podemos chegar a uma concepção normativa das relações sociais que seja bastante forte. A diferença entre egoísmo atomista e sociedade civil não consiste meramente no facto da infinitude do apetite individual ter sido refreada pelas leis que se fazem cumprir perante a ameaça do castigo, mas que a razão reúne as pessoas no reconhecimento dos interesses comuns e da vontade geral.
O povo soberano encarna o ponto de vista universal do interesse colectivo e da cidadania igualada. Na consecução dos seus interesses individuais as pessoas possuem uma orientação particularista. Todavia, a razão normativa revela o ponto de vista imparcial que pode ser adoptado por todas as pessoas racionais e que expressa uma vontade geral não redutível a um agregado de interesses particulares. Participar na vontade geral como cidadão é uma expressão da nobreza humana e da liberdade genuína. Não obstante, este compromisso racional com a colectividade não é compatível com a satisfação pessoal e, para Rousseau, é isto que constitui a tragédia da condição humana
[7].
Rousseau concebeu que este âmbito público devia ser unificado e homogéneo, e sugeriu inequivocamente métodos para fomentar, entre os cidadãos, o compromisso com essa unidade através das celebrações cívicas, ainda que a pureza, a unidade e a generalidade deste âmbito público impliquem transcender e reprimir a parcialidade e a diferenciação da necessidade, do desejo e da afectividade. Rousseau não acreditava que a vida humana pudesse ou devesse funcionar sem emoção nem sem a satisfação da necessidade e do desejo. A natureza particular do homem como um ser de sentimentos e necessidades é representada no âmbito privado da vida doméstica, do qual as mulheres constituem as guardiãs morais mais apropriadas.
A filosofia política de Hegel desenvolveu esta concepção do âmbito público do Estado como expressão da imparcialidade e universalidade contra a parcialidade e substância do desejo. Para Hegel, a descrição liberal das relações sociais baseadas na liberdade dos indivíduos que se podem definir a si mesmos e que podem perseguir os seus próprios fins, descreve adequadamente um único aspecto da vida social, o da esfera da sociedade civil. Enquanto membro da sociedade civil, a pessoa persegue fins privados para si e para a família. Estes fins podem estar em conflito com os dos outros, mas as interacções de troca produzem muita harmonia e satisfação. Por outro lado, a pessoa concebida como membro do Estado, não é o locus do seu desejo particular, mas a portadora de direitos e responsabilidades universalmente articuladas. O ponto de vista da lei e do Estado transcende qualquer interesse particular, para expressar o espírito da humanidade universal e racional. As leis e a acção do Estado expressam a vontade geral, os interesses da sociedade como um todo. Dado que é difícil, se não impossível, alguém manter este ponto de vista universal ao mesmo tempo que está comprometido com a consecução dos seus interesses particulares, torna-se necessária uma classe de pessoas cujo único trabalho seja a manutenção do bem público e o ponto de vista universal do Estado. Para Hegel estes oficiais do governo constituem a classe universal
[8].
Marx foi sem dúvida o primeiro a negar a pretensão de imparcialidade e universalidade do Estado. A divisão entre o âmbito público da cidadania e o âmbito privado do desejo e da cobiça individuais deixa intactas a desigualdade e a competição que se dão no âmbito privado. Na sociedade capitalista, a aplicação de um princípio de imparcialidade reproduz a posição da classe dirigente, porque os interesses de quem é substancialmente mais poderoso são considerados do mesmo modo que aqueles que não têm poder
[9]. Apesar desta crítica, e por mais poderosa que seja, Marx não chega a questionar o ideal de um público que expresse uma perspectiva normativa imparcial e universal; simplesmente afirma que dentro da sociedade capitalista esse tipo de público não é realizável.
Creio que as últimas análises feministas acerca da dicotomia entre o privado e o público na teoria política moderna implicam que o ideal do cívico público como algo imparcial e universal é suspeito. Os teóricos políticos e os políticos modernos proclamavam a imparcialidade e a generalidade do público e, ao mesmo tempo, bastante conscientemente, consideravam adequado que algumas pessoas, quer dizer, as mulheres, e quem não era branco e, ocasionalmente, quem não tinha propriedade, fossem excluídas da participação pública. Se isto foi simplesmente um erro, sugere o ideal do cívico público enquanto expressão do interesse geral, do ponto de vista imparcial da razão, que acaba por resultar na exclusão. Ao assumir que a razão se opõe ao desejo, à afectividade e ao corpo, o cívico público deve excluir os aspectos corporais e afectivos da existência humana. Na prática, este pressuposto conduz a uma homogeneidade de cidadãos sobre o cívico público. Exclui do público aqueles indivíduos e grupos que não se adequam ao modelo de cidadão racional que pode transcender o corpo e os sentimentos. Esta exclusão baseia-se nas tendências que as feministas assinalam: a oposição entre a razão e o desejo e a associação destes traços a tipos de pessoas.
No esquema social expresso por Rousseau e Hegel, as mulheres devem ser excluídas do âmbito público da cidadania devido ao facto de serem guardiãs da afectividade, do desejo e do corpo. Permitir que as chamadas ao desejo e as necessidades corporais agitassem o debate público, minava a deliberação pública fragmentando a sua unidade. Além disso, mesmo dentro do âmbito doméstico, as mulheres devem ser dominadas. A sua sexualidade perigosa e heterogénea deve ser mantida na sua castidade e confinar-se ao matrimónio. Forçar a castidade nas mulheres manterá cada família como uma unidade separada, impedindo o caos e a mistura de sangue que produziria filhos ilegítimos. Estas mulheres castas e encerradas podem ser então as guardiãs apropriadas do desejo do homem, moderando os seus impulsos potencialmente destrutivos mediante a educação moral. O mesmo desejo dos homens para com as mulheres ameaça destruir e dispersar o âmbito racional universal do público, bem como desbaratar a clara distinção entre o público e o privado. Enquanto guardiãs do âmbito privado da necessidade, do desejo e da afectividade, as mulheres devem garantir que os impulsos dos homens não os afastem da universalidade da razão. Além de que a pulcritude moral do coração de tendência feminina moderará os impulsos dos homens possessivamente individualistas de âmbito particularista dos negócios e do comércio, da mesma forma que a sexualidade ameaça constantemente fazer saltar a unidade da sociedade sob o guarda-chuva da razão universal
[10].
O mundo burguês instituiu uma divisão moral do trabalho entre razão e sentimento, identificando masculinidade com razão e feminilidade com sentimento e desejo
[11]. Como Linda Nicholson defendeu, a esfera moderna da família e da vida pessoal são uma criação tão moderna como o âmbito moderno do Estado e da lei, e são uma parte do mesmo processo[12]. A imparcialidade e a racionalidade do Estado dependem do facto da necessidade e do desejo serem conteúdos do âmbito privado da família[13]. Embora o âmbito da vida pessoal e do sentimento terem sido totalmente desvalorizados por terem sido excluídos da racionalidade, constituiu ainda assim o foco de um compromisso cada vez maior. A modernidade desenvolveu um conceito de “natureza interna” que precisa ser alimentado e dentro do qual há que encontrar a autenticidade e a individualidade do eu, e não a conformidade, regularidade e universalidade do público. Pelo que o cívico público exclui o sentimento e o desejo parcialmente para proteger o seu carácter “natural”.
Não apenas na Europa, mas também nas primeiras décadas dos Estados Unidos, a burguesia masculina e branca concebeu que a virtude republicana era racional, restrita e casta, não conducente à paixão, ao desejo de luxúria. Aqueles que colaboraram na Constituição americana restringiram especificamente o acesso da classe trabalhadora ao público racional, porque temiam a irrupção dos compromissos com os interesses gerais. Alguns, como Jefferson, temeram até que se desenvolvesse um proletariado urbano. Os primeiros republicanos americanos também foram bastante explícitos sobre a necessidade de homogeneidade dos cidadãos, que desde os primeiros tempos da república implicava as relações dos republicanos brancos com os negros e os americanos nativos. Estes pais americanos, como Jefferson, identificavam as pessoas vermelhas e negras dos seus territórios com a natureza selvagem e a paixão, do mesmo modo que temiam que, fora do âmbito doméstico, as mulheres fossem caprichosas e avarentas. Definiam a vida republicana moral e civilizada por oposição a este desejo sem cultivar aquilo que era próprio de pessoas atrasadas que eles identificavam com as mulheres ou com quem não era branco
[14].
Em resumo, o ideal de razão normativa, o sentido moral, opõe-se ao desejo e à afectividade. A razão civilizada imparcial caracteriza a virtude do homem republicano que se eleva acima da paixão e do desejo. Não obstante, em vez de descolar por completo o homem burguês do corpo e da afectividade, esta cultura do público racional confina-os à esfera doméstica da mesma forma que confina as paixões das mulheres, proporcionando consolo emocional aos homens e aos filhos. Dentro deste âmbito doméstico, os sentimentos podem aflorar sem qualquer dúvida, e cada indivíduo pode reconhecer e afirmar a sua particularidade. A razão normativa moderna e a sua expressão política na ideia do cívico público tem, pois, unidade e coerência mediante a expulsão e o confinamento de tudo o que ameaça invadir o Estado com a sua diferenciação: a especificidade dos corpos e desejos das mulheres, a diferença de raça e de cultura., a variabilidade da heterogeneidade das necessidades, os fins e desejos de cada indivíduo, a ambiguidade e a variabilidade dos sentimentos.»
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[1] Richard Sennett, The Fall os the Public Man, New York, Random House, 1974.
[2] Veja-se Marshall Berman, All that is Solid Melts into Air, New York, Simon and Shuster, 1982.
[3] Jürgen Habermas, “The Public Sphere: na Encyclopedia Article”, New German Critique, 1, 3, Outono 1974, pp. 49-55.
[4] Sennett, The Fall os the Public Man, cap. 4.
[5] Veja-se John Landes, “Woman and the Publica Sphere: The Challenge of Feminist Discourse”, ensaio apresentado como parte do Colóquio do Instituto Bunting, Abril 1983.
[6] Charles Ellison, “Rousseau’s Critique of Codes Speech and Press in Urban Public Life: implications for its Political Theory”, University of Cincinnati, inédito.
[7] Judith Shklar, Men and Citizens, Cambridge, CUP, 1969.
[8] Veja-se Z. A. Pelczynski, “The Hegelian Conception of the States”, in Pelczynsk, Z. A. /ed.), Hegel’s Political Philosophy: problems and Perspectives, Cambridge, CUP, 1971, pp. 1-29; e Anthony S. Walton, “Public and Private Interests: Hegel on Civil Society and the State”, in Benn & Gaus (eds.), Public and Private in Social Life, pp. 249-66.
[9] Há muitos textos nos quais Marx faz este tipo de afirmações, como na “On the Jewish Question” e “Critique of the Gotha Program”. Para a discussão destes aspectos veja-se Shlomo Avineri, The Social and the Political Thought of Karl Marx, Cambridge, CUP, 1968, pp. 41-8.
[10] Para análises feministas de Hegel, veja-se as obras de Okin, Einstein, Elshtain, Lange e Clark, citadas na nota 3. Veja-se também Joel Schwartz, The Sexual Politics of Jean-Jacques Rousseau, Chicago, University Press, 1984.
[11] Veja-se Genevieve Lloyd, The Man of Reason: “male” and “Female”, in Western Philosophy, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984; Lynda Glennon, Women and Dualism, New York, Logman, 1979.
[12] Nicholson, Gender and History.
[13] Eisenstein afirma que o estado moderno depende da família patriarcal; veja-se The Radical Future.
[14] Ronald Takaki, Iron Cages: Race and Culture in Nineteenth Century América, New York, Knopf, 1979.

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