sábado, 24 de maio de 2008

Iris Marion Young, “Imparcialidade e o Cívico Público. Algumas implicações das críticas feministas para a teoria moral e política” (Parte V)

«Para uma vida pública heterogénea

Argumentei que a distinção entre público e privado, tal como aparece na teoria política moderna, expressa uma vontade de homogeneidade que torna necessária a exclusão de muitas pessoas e grupos, particularmente as mulheres e os grupos marcados por um estigma racial que são identificados culturalmente com o corpo, o selvagem e a irracionalidade. Em conformidade com a ideia moderna da razão normativa, a ideia do público na teoria política moderna, bem como a prática, designa uma esfera da existência humana na qual os cidadãos expressam a sua racionalidade e universalidade, a abstracção feita a partir da sua situação e necessidades particulares e em oposição ao sentimento. Esta crítica feminista do público excludente não implica, como sugere Jean Elshtain, o fracasso da distinção entre público e privado[1]. Estou desde logo de acordo com aqueles escritores, entre os quais se incluem Elshtain, Habermas, Wolin e muitos outros, que afirmam que foi a vida social contemporânea que fez com que o público fracassasse, e que uma política emancipatória exige que se produza um sentido renovado da vida pública. Todavia, o exame do ideal excludente e homogéneo do público na teoria política moderna mostra que não podemos conceber essa renovação da vida pública como uma recuperação dos ideais da Ilustração. Para o substituir, precisamos transformar a distinção entre público e privado para que não esteja correlacionada com uma oposição entre razão e afectividade e desejo, nem com universal e particular.

O significado primordial do público é o que está aberto e acessível. Para a política democrática isto significa duas coisas: deve haver espaços públicos e expressão pública. Um espaço público será qualquer espaço interior ou exterior ao qual qualquer pessoa possa ter acesso. A expressão é pública quando terceiras partes possam ser suas testemunhas dentro de instituições que lhes dão oportunidades para responder à expressão e entrar em discussão, e através dos media que, em princípio, permitem que qualquer pessoa entre na discussão. A expressão e a discussão são políticas quando suscitam e tratam temas relativos ao valor moral e a desejabilidade humana de uma instituição ou prática cujas decisões afectam um grande número de pessoas. Este conceito do público, que deriva inequivocamente de certos aspectos da experiência urbana moderna, expressa uma concepção das relações sociais que não é, em princípio, excludente.

A noção tradicional do âmbito privado, como refere Hannah Arendt, está etimologicamente relacionada com a privação. Na sua opinião, o privado é aquilo que deve ficar ocultado, o que não pode ser trazido à luz. Segundo esta noção tradicional, o privado está relacionado com a vergonha e a imperfeição e, como salienta Arendt, implica excluir do público os aspectos afectivos corporais e pessoais da vida humana[2].

Em vez de definir a privacidade como aquilo que exclui o público, a privacidade deveria definir-se, tal como o faz grande parte da teoria liberal, como um aspecto da vida e actividades que qualquer indivíduo tem o direito de excluir das demais. Com o desenvolvimento das burocracias tanto estatais como não-estatais, a defesa da privacidade não se converteu, neste sentido, numa mera questão de manutenção do Estado separado de determinados assuntos, mas de pedir acções positivas por parte do Estado que assegurem que as actividades de organizações não estatais, tais como as corporações, respeitem as pretensões de privacidade dos indivíduos.

A divisa feminista “o pessoal é político” não nega a distinção entre o público e o privado, mas a divisão social entre esfera pública e esfera privada, com tipos diferentes de instituições, actividades e atributos humanos. São dois os princípios que decorrem desta divisa: a) a priori não se deve excluir qualquer instituição ou prática social como tema próprio de discussão e expressão públicas; e b) nenhuma pessoa, actividade ou aspecto da vida de uma pessoa deve ser obrigada à privacidade.

1. O Movimento das Mulheres contemporâneo transformou em temas públicos muitas práticas que eram consideradas demasiado triviais ou privadas para a discussão pública: o significado dos sobrenomes, a violência doméstica contra as mulheres, a acção dos homens abrirem a porta às mulheres, os ataques sexuais às mulheres e crianças, a divisão sexual do trabalho doméstico e outros mais. A política radical da vida contemporânea consiste em retomar muitas acções e actividades que se julgavam propriamente privadas, tais como o modo como os homens investem o dinheiro, e fazer delas assuntos públicos.

2. O segundo princípio diz que nenhuma pessoa ou nenhum aspecto de uma pessoa deve ser obrigado à privacidade. Como defendi, a concepção moderna do público cria uma concepção de cidadania que exclui da atenção pública muitos dos aspectos particulares das pessoas. Supõe-se que a vida pública é “cega” quanto ao sexo, raça, idade e outros, e supõe-se que tudo isto entra no público e discute-se nos mesmos termos. Uma tal concepção do público teve como resultado o facto de ficarem excluídas da vida pública as pessoas ou determinados aspectos das pessoas.

A nossa sociedade continua a ser tal que força a privacidade das pessoas ou determinados aspectos das pessoas. A repressão da homossexualidade será porventura o exemplo mais flagrante. Nos Estados Unidos bastantes pessoas parecem possuir hoje a opinião bastante liberal de que as pessoas têm o direito a ser homossexuais na medida em que as suas actividades sejam privadas. Chamar a atenção pública para o facto de se ser homossexual, exibir publicamente os afectos homossexuais ou simplesmente afirmar as necessidades e direitos dos homossexuais provocam o ridículo e o temor a muita gente. Para além de que transformar a homossexualidade num assunto público, sugerindo que a domínio dos pressupostos heterossexuais é unidimensional e opressivo, raramente poderá fazer-se ouvir nem sequer entre feministas e radicais. Em geral, a política contemporânea garante a todos as pessoas a entrada no público desde que não reclamem direitos ou necessidades especiais nem chamem a atenção para a sua história ou cultura particulares e mantenham privadas a suas paixões.

Os novos movimentos sociais desenvolvidos nos Estados Unidos nas décadas de 60, 70 e 80, começaram a criar uma imagem mais diferenciada do público que contrasta directamente com um Estado supostamente imparcial e universalista. Os movimentos dos grupos racialmente oprimidos, que incluíam a libertação dos negros, dos mexicanos e dos índios americanos, tendem a rejeitar o ideal administrativo e a afirmar os direitos à educação e a celebrar publicamente as suas culturas e formas de vida características, assim como a formular exigências especiais de justiça que derivam da supressão ou desvalorização das suas culturas, ou compensações pelas desvantagens vividas no interior da cultura dominante. Também o Movimento das Mulheres quis desenvolver e fomentar uma cultura caracteristicamente feminista na qual tanto as necessidades corporais específicas das mulheres como a situação das mulheres na sociedade dominada pelos varões, exigiam atenção pública para as necessidades especiais e os contributos únicos das mulheres. Os movimentos dos deficientes, dos idosos e de libertação homossexual masculina e feminina, produziram, todos eles, uma imagem da vida pública na qual as pessoas reafirmam a sua diferença e apresentam publicamente exigências relativas à satisfação das suas necessidades específicas.

As manifestações nas ruas, que nos últimos anos têm sido adoptadas pela maioria destes grupos, bem como por grupos de operários e pelos defensores da ecologia e do desarmamento nuclear, criam por vezes esferas públicas heterogéneas de paixão, jogo e interesse estético. Essas manifestações centram-se sempre em temas que se espera que passem para a discussão pública, para que estes temas se discutam: se exijam coisas e se apoiem essas exigências. O estilo político desses acontecimentos tem, contudo, muito menos elementos discursivos: bandeiras alegremente decoradas com palavras de ordem irónicas e divertidas, teatro de choque ou trajes que servem para fazer alusões políticas, bonecos gigantes que representam ideias ou pessoas, canções, música, bailes. A liberalização da expressão pública não significa apenas a exaltação de temas que anteriormente estavam privatizados abrindo-os à discussão pública e racional que considera um bem tanto os fins como os meios, mas também afirmar na prática dessas discussões o lugar a que corresponde a paixão e o jogo no público.

À medida que a década de 70 avançava, e os interesses e experiências particulares expressos por esses diferentes movimentos foram amadurecendo em confiança, coerência e compreensão do mundo do ponto de vista desses interesses, foi-se tornando possível um novo tipo do público que poderia persistir para além de uma única manifestação. Esta forma do público é expressa pela ideia de uma “Aliança do Arco-íris”. Realizada de certa forma durante alguns meses em 1983 durante a campanha de Mel King em Boston e em 1984 durante a campanha de Jesse Jackson em algumas cidades, é uma ideia do político público que vai mais além do ideal da amizade cívica que une as pessoas com um propósito comum em termos de igualdade e respeito mútuo[3]. Ao incluir o compromisso com a igualdade e o respeito mútuo entre os participantes, a ideia da “Aliança do Arco-íris” preserva e institucionaliza, especificamente na sua forma de discussão organizacional, os grupos heterogéneos que a constituem. Neste aspecto distingue-se completamente do ideal ilustrado do público civil (que aqui poderia encontrar o seu análogo na prática da ideia de uma “frente unida”). Enquanto princípio geral, esta ideia do público heterogéneo afirma que é o único modo para assegurar que a vida pública não exclua pessoas e grupos que foram, no passado, excluídos e faz um reconhecimento específico das desvantagens desses grupos e introduz as suas histórias específicas no público[4].

O que sugeri é que o ideal ilustrado pelo cívico público como o espaço em que os cidadãos se encontram em termos de igualdade e respeito mútuo é um ideal do público demasiado acabado e domesticado. Esta ideia de cidadania igual alcança a unidade porque exclui a particularidade corporal e afectiva, bem como a história concreta dos indivíduos que fazem com que os grupos não possam entender-se entre si. Uma política emancipatória deveria fomentar uma concepção do público que, em princípio. não excluísse qualquer pessoa, nem qualquer aspecto da vida das pessoas, nem qualquer tema de discussão, e que estimulasse a expressão estética tanto quanto a discursiva. Pode ser que nessa concepção do público, o consenso e os critérios compartilhados nem sempre sejam um fim, mas o reconhecimento e a apreciação das diferenças, num contexto de confronto com o poder[5]
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[1] Elshtain, Public Man, parte II.
[2] Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago, University of Chicago Press, 1958.
[3] Veja-se Drucilla Cornell, “Toward a Modern/Postmodern Reconstruction of Ethics”, University of Pennsylvania Law Review, 133, 2, 1985, pp. 291-380.
[4] Thoms Bender promove uma concepção do público heterogéneo que seria importante para uma história política urbana que não estivesse dominada pela perspectiva dos privilegiados de então e agora: “The History of Culture and the Culture of Cities”, artigo apresentado numa reunião da Associação Internacional de Filosofia e Literatura, New York, Maio de 1985.
[5] Estou bastante grata a David Alexander por todo o tempo que dedicou e tudo o que pensou para este ensaio.

Iris Marion Young, “Impartiality and the Civic Public. Some implications of Feminist Critiques of Moral and Political Theory” in Benhabib, Seyla & Cornell, Drucilla (eds.) (1987). Feminism As Critique: Essays on the Politics of Gender in Late-Capitalist Societies. Minneapolis: University of Minnesota Press, pp. 56-76 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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