quarta-feira, 11 de junho de 2008

Harry Frankfurt, "A Igualdade como Ideal Moral" (Parte VII)

«Apêndice
O igualitarismo económico é uma posição aridamente formalista. A quantidade de dinheiro que os seus seguidores querem para si próprios e para os outros é calculada sem considerar as características ou as circunstâncias pessoais de alguém. Nesta formalidade, os igualitaristas parecem pessoas que desejam ser o mais ricas possível, mas que não fazem ideia do que fazer com a sua riqueza. Em nenhum caso as ambições individuais, no que ao dinheiro se refere, se limitam ou se medem de acordo com a compreensão das metas relativamente às quais a pessoa deseja que o seu dinheiro sirva ou da importância que estas metas têm para ela.

O desejo de riqueza ilimitada é fetichista na medida em que reflecte, quanto a um meio, uma atitude – quer dizer, desejar algo por si mesmo – que é apropriada apenas relativamente a um fim. Parece-me que a atitude adoptada por John Rawls face ao que ele chama de bens primários (“direitos e liberdades, oportunidades e poderes, rendimento e riqueza”)[1] tende ao fetichismo neste sentido. Os bens primários são “meios para todos os propósitos” – explica Rawls -, que as pessoas precisam independentemente do tudo mais que desejem: “Os planos diferem, dado que as capacidades, as circunstâncias e os desejos individuais diferem […]; contudo, qualquer que seja o nosso sistema de fins, os bens primários são um meio necessário” (p. 93). Apesar do facto de identificar os bens primários apenas como meios e não como fins, Rawls considera racional que uma pessoa queira tantos quanto venha a ser possível. Assim diz:

Independentemente de quais sejam em detalhe os planos racionais de um indivíduo, supõe-se que há diversas coisas que prefere em quantidade maior do que menor. […] Embora as pessoas que estão na posição original não saibam qual é a sua concepção do bem, sabem, suponho, que preferem uma quantidade maior de bens primários do que uma menor (pp. 92-3).

A suposição de que deve ser sempre melhor possuir mais bens primários do que menos, implica que a utilidade marginal de uma quantidade adicional de um bem primário é invariavelmente maior que o seu custo. Por outras palavras, implica que a maior quantidade de bens primários nunca é superada por maiores desvantagens, deficiências ou fardos que lhes correspondam.

Todavia, isto parece muito pouco razoável. Independentemente de qualquer outra consideração, possuir mais de um bem primário pode exigir que um indivíduo responsável invista mais tempo e esforço para se ocupar dele e para tomar decisões quanto ao seu uso. Para muitas pessoas, estas actividades são intrinsecamente pouco atraentes; e, em geral, também supõem uma certa carga de ansiedade e um grau de distracção relativamente a outros interesses. É claro que não se deve dar por assente que os maiores custos desta classe nunca podem superar qualquer benefício aumentado que proporcionaria uma maior quantidade correspondente de algum bem primário.

Os indivíduos bem colocados na posição original estão por detrás de um véu de ignorância. Não conhecem as suas próprias concepções do bem nem os seus próprios planos de vida. Portanto, pode parecer-lhes racional escolher possuir bens primários em quantidades ilimitadas: dado que não sabem para que se devem preparar, talvez seja melhor que estivessem preparados para qualquer coisa. Contudo, mesmo na posição original é possível que as pessoas apreciem que, até certo ponto, o custo dos bens primários adicionais poderia exceder os benefícios que esses bens proporcionariam. É verdade que um indivíduo que está por detrás de um véu de ignorância não pode saber exactamente em que ponto consideraria que um aumento da sua provisão de bens primários custa mais do que vale. Seguramente que a ignorância da localização exacta desse ponto não justificaria que agisse como se esse ponto não existisse em absoluto. Não obstante, age precisamente dessa maneira se escolhe que a quantidade de bens primários que possui é ilimitada.

Rawls reconhece que as quantidades adicionais de bens primários podem ser, para certos indivíduos, mais caras do que realmente merecem. Contudo, na sua opinião, isto não invalida a suposição de que é racional que todos os que estão na posição original queiram todos os bens primários que possam obter. Ele explica-o da forma seguinte:

Postulo que elas [quer dizer, as pessoas que estão na posição original] supõem que prefeririam mais bens sociais primários do que menos. De facto, logo que se retira o véu de ignorância, pode acontecer que algumas delas, por razões religiosas ou de outra índole, com efeito, não queiram mais destes bens. Todavia, do ponto de vista da posição original, é racional, que as partes suponham se querem que a sua parcela seja maior, já que, de todas as formas, não estão obrigadas a aceitar mais se não o desejam fazer, nem a sofrer com uma liberdade maior (pp. 142-3).

Não me parece que este argumento seja convincente. Descuida o facto de que prescindir de bens primários disponíveis ou recusá-los é, em si mesmo, uma acção que pode implicar custos significativos. Podem fazer falta deliberações e cálculos onerosos para que uma pessoa determine se vale a pena ter um aumento de algum bem primário; e tomar decisões deste tipo pode supor responsabilidades e riscos em virtude dos quais a pessoa experimenta uma angústia considerável. Para além disso, qual será a base para afirmar que ninguém sofre com uma liberdade maior? Parece que, sob uma variedade de circunstâncias, as pessoas podem razoavelmente preferir ter menos alternativas de escolha a mais. Certamente, a liberdade, como tudo o resto, tem custos. É um erro supor que a vida de uma pessoa melhora invariavelmente, ou que não podem piorar, quando aumentam as suas opções[2]
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[1] J. Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1971, p. 92.
[2] Para uma análise pertinente deste tema, veja-se Gerald Dworkin, “Is more choice better than less?”, in P. French, T. Uchling e H. Wettstein (comps), Midwest studies in Philosophy VII, Minneapolis, 1982.....................................

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Fankfurt, Harry G. (1988). The Importance of What We Care About. Philosophical Essays. New York: Cambridge University Press, pp. 134-58 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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