quarta-feira, 18 de junho de 2008

Hugo Adam Bedau, “Um escrutínio abolicionista da pena de morte na América de hoje” (Parte I)

«Com receio de que surja qualquer dúvida na mente do leitor, deixem-me declarar desde já que me oponho fortemente à pena de morte independentemente do crime ou do criminoso. Isto será suficientemente evidente no desenvolvimento deste ensaio e especialmente quando oferecer um argumento contra a pena capital. À margem da minha posição, talvez a melhor forma de começar esta discussão sobre a pena de morte na América e sobre as controvérsias que provocou, é sintetizando a sua história no nosso país. Essa história é largamente uma história dos esforços para a limitar e abolir.

I

O primeiro colono europeu cuja execução foi registada por estes lados é a de Goerge Kendall, na colónia de Jamestown, na Virgínia. Foi enforcado em 1608 pelo crime de “espionagem a favor da Espanha”
[1]. Nos quatro séculos subsequentes um número incontável – talvez duzentos ou mais – de assassinos condenados, violadores, ladrões de cavalos, espiões, bruxas, e raptores, entre outros, tiveram um destino similar. Ninguém deve surpreender-se por os colonos terem acolhido a pena de morte (juntamente com outras formas de punição corporal, tais como chicotear, marcar, e exposições públicas); a Terra Mãe colocou ela própria uma confiança extrema neste tipo de punição para controlar um público rebelde.

Durante a era Revolucionária, diz-nos Louis Masur, “um grupo diverso de Americanos considerava a pena de morte moral e politicamente repugnante”[2]. É verdade que sim. Benjamin Rush de Filadélfia – médico, amigo de Benjamin Franklin, e um dos Pais Fundadores – foi o principal opositor do enforcamento. Em 1797 publicou uma lição em que atacava as execuções públicas sob o título de “Considerações sobre a Injustiça e a Não política da Punição do Homicídio com a Morte”; impresso como panfleto, e que circulou amplamente. Rush defendia que “ A Punição do Homicídio com a Morte é contrário à razão, à ordem e à felicidade da sociedade [bem como] contrário à revelação divina”. As lições e os ensaios de Rush assinalam o início do movimento abolicionista neste país. Durante o século e meio seguinte – grosso modo de 1780 e tal a 1950 e tal – produziram-se diversas alterações na lei que afectaram a pena de morte e que foram pioneiras em várias legislaturas de estados ou, em décadas mais recentes, decretadas pelo Supremo Tribunal. Seis destes desenvolvimentos foram preponderantes, e cada um deles merece um escrutínio mais cuidado.

Introduzindo os Graus de Homicídio

A primeira grande acção do movimento abolicionista consiste na aprovação de uma nova lei em 1793 na Pensilvânia que dividia o homicídio em duas categorias, em homicídio em primeiro e em segundo grau, e na limitação da punição com a morte aos criminosos condenados por homicídio em primeiro grau. (O homicídio em primeiro grau era definido de forma a incluir tanto o homicídio premeditado como o chamado homicídio agravado, quer dizer, qualquer homicídio perpretado durante a ocorrência de outro delito grave, como fogo posto, roubo, violação, ou assalto.[3]) Os abolicionistas Quaker do estado de Keystone pensaram que a revogação completa no seu estado dos decretos da pena de morte estava perfeitamente ao seu alcance. Foram os primeiros, mas não os últimos abolicionistas a aprender que deviam contentar-se com menos.

A lei inglesa há muito que reconhecia uma distinção clara entre assassinato e homicídio (a morte de outra pessoa sem maldade ou premeditação) e limitava a pena de morte para os homicidas do primeiro tipo. Na América, a criação de graus de homicídio e a limitação da sentença de pena de morte aos ofensores culpados de homicídio em primeiro grau contribui para o reconhecimento de que nem todos os homicídios são igualmente maus, perigosos e irremediáveis – uma proposição há muito reconhecida pelo senso comum – e que, por isso, nem todos os homicídios eram igualmente merecedores da punição máxima.

Contudo, a aplicação da distinção entre os dois tipos de homicídio à prática actual, revelou-se difícil, então como agora. Até Benjamim Cardozo, um eminente membro do Supremo Tribunal d Justiça (1870-1938) desesperou com esta distinção, afirmando que “era demasiado vaga para continuar na nossa lei… e que por [essa] razão… com a sua psicologia mistificadora, grupos de homens caminharam para as suas mortes”[4].

No último quarto de século, a condenação de um criminoso por homicídio em primeiro grau não tem sido razão suficiente para que essa pessoa receba a pena de morte. Para que sejam “elegíveis” para a pena de morte, o acusado e o crime devem exibir também aquilo que é designado por “circunstâncias agravantes”. Estas circunstâncias (por exemplo, a vítima ser um agente da lei, o ofensor já possuir uma condenação prévia por delito grave, o crime ser particularmente horrífico e desumano) são habitualmente especificadas pelo decreto e faz parte da instrução do juiz para o júri. A lei estabelece tipicamente que é condição necessária de uma sentença de morte que o júri do tribunal encontre pelo menos uma destas “agravantes”. A introdução desta táctica nas sentenças de pena de morte não é senão mais um outro esforço para diminuir o pior do mau e para limitar a pena de morte ao primeiro.

Acabar com as execuções públicas

A segunda principal reforma, igualmente introduzida por Rush, foi a de tentar acabar com os espectáculos das execuções públicas a favor da aplicação da pena de morte atrás de paredes especialmente construídas para o efeito ou no interior de prisões fechadas. Nova Iorque foi, em 1834, a primeira cidadã a adoptar esta reforma; seguiram-se imediatamente a Pensilvânia, Nova Jérsia e outros estados. Contudo, como observa Stuart Banner, um historiador da lei, “já bem dentro do século dezanove, as multidões que presenciavam as execuções suplantavam largamente as multidões que se reuniam por outros motivos”[5]. Havia ainda pouca privacidade nessas práticas. Nem todos a assistência era proibidos. Repórteres, guardas prisionais, e familiares vivos da vítima eram convidados a presenciar as execuções; ainda hoje é assim. Numa das últimas execuções públicas, em Owensboro, Kentucky, em 1936, um repórter dizia: “Duzentas das 20,000 pessoas que viram Rainey Bethea, um aturdido rapaz negro de 22 anos, enforcado hoje aqui ao amanhecer, moviam-se como um enxame sobre a forca enquanto o seu corpo estava ainda suspenso sobre a armadilha… eles desfizeram a madeira da sua face amedrontada e perseguida para conseguir lembranças… Bethea sucumbiu à sua morte… à medida que 20,000 fãs ao rubro ocupavam cada lugar vazio”[6].

Os abolicionistas viam (e ainda vêem) o fim das execuções públicas de forma diversa. Por um lado, remetê-las para o interior era reconhecer tacitamente que enforcar um condenado indefeso em público era desagradável e que presenciá-lo era voyerismo. Por outro lado, negar ao público o direito de assistir à administração da punição legal era visto por muitos como contrário aos princípios do governo republicano. Em 1836, o Professor de Filosofia de Bowdoin College, Thomas Upham (1799-1872), um acérrimo opositor da pena de morte, defendeu: “Os nossos tribunais de justiça devem ser abertos ao público; as deliberações da nossa legislatura devem ser públicas…. Se os assuntos desta natureza forem executados de facto, devem ser executados à luz do dia”[7]. Estes sentimentos foram recentemente repetidos pelo libertário civil Nat Hentoff aquando da aproximação da execução de Timothy McVeigh. “Nós, enquanto povo”, escreveu ele, “exigimos responsabilidade dos nossos funcionários públicos. Seguramente que não devemos ignorar o nosso dever de testemunhar as – e dessa forma responder pelas – execuções que permitimos”[8]. Assim vai o debate sobre se essas discussões devem ser efectivamente públicas.

Introduzindo a discrição da sentença do Júri

A próxima importante reforma consistiu em dar ao júri do tribunal o poder de decidir se o acusado que acabaram de condenar deve ser sentenciado à morte ou se deve receber “misericórdia”, sob a forma de uma longa pena de prisão (habitualmente perpétua). De todas as reformas do longo romance da América com a pena de morte, nenhuma é mais significativa (ou em contraste mais evidente com a lei Inglesa) do que o fim da pena de morte como uma punição obrigatória.

Exactamente onde e porquê esta reforma foi promulgada, permanece obscuro. Sabemos que em 1838 o Tennessee foi o primeiro estado a conceder ao júri do tribunal o poder de sentenciar num caso capital homicidas condenados à morte ou à prisão, e que, alguns anos mais tarde, o Louisiana estendeu este poder aos júris dos julgamentos de todos os ofensores capitais, independentemente do crime. Como reforma populista, garantir ao povo (sob a forma de júri do julgamento) o poder discricionário de sentenciar – o poder da vida e da morte – dificilmente pode ser igualada. Até hoje, os governadores nos seus discursos públicos têm negado clemência em casos capitais apressando-se a apontar que um júri de doze cidadãos falou, e que a condenação e depois a sentença de morte, são razões difíceis de ignorar.

Hoje, graças às determinações do Supremo Tribunal, não há penas de morte obrigatórias em qualquer parte da nação. Dado que em 1987 o Tribunal considerou inconstitucional a pena de morte obrigatória para um homicida na prisão que tenha sido condenado por ter cometido outro homicídio[9], é improvável que o Tribunal venha no futuro a apoiar o decretar da pena capital obrigatória.

É bastante duvidoso que hoje os júris de julgamentos capitais desempenhem a sua tarefa discricionária de sentenciar como o Supremo Tribunal acreditava que o fariam quando decretou as reformas da lei da pena capital durante os anos setenta. No início dos anos oitenta, o Projecto Júri Capital entrevistou centenas de júris de julgamentos capitais anteriores em diversas jurisdições da pena de morte para determinar se eles compreendiam as instruções dos juízes relativamente à produção de sentenças e se eles obedeciam a essas instruções. A investigação já publicada é bastante desencorajadora relativamente a ambos os aspectos[10]
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[1] Victoria Schneider e John Oritz Smykla, “A Summary Analysis of Executions in the United States, 1608-1687: The Espy File”, in Robert H. Bohm, ed., The Death penalty in America: Current Research, Cincinnati, Oh., 1881, p. 4.
[2] Louis P. Masur, Rites of Execution: Capital Punishment and The Transformation of American Culture, 1776-1865, New York, Oxford University Press, p. 61.
[3] E. R. Keedy, “History of the Pennsylvania Statute Creating Degrees of Murder”, University of Pennsylvania Law Review, 97 (1949), pp. 759-77.
[4] Benjamin Cardozo, Law and Literature, New York, Harcourt, 1931, p. 101.
[5] Stuart banner, The Death Penalty: an American History, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 2002, p. 25.
[6] “There was a Reason They Outlawed Public Executions”, New York Times, May 6, 2001, p. wk5.
[7] Masur, Rites of Execution, p. 110.
[8] E. J. Dionne Jr., “McVeigh’s Punishment is a Test for All of Us”, Boston Globe, April 18, 2001, p. A17.
[9] Sumner vs Shuman, 483 U.S. 66 (1987).
[10] Veja-se “Symposium: How the Death Penalty Worlds”, Cornell Law Review, 83 (1998), pp. 1431-1820; e “Symposium: The Capital Jury Project”, Indiana Law Review, i18 (1985), pp. 1033-1270.
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