domingo, 15 de junho de 2008

Iris Marion Young, “A Acção Afirmativa e o Mito do Mérito” (Parte I)

«Não temos palavras para nos referirmos à nossa opressão, à nossa angústia, à nossa amargura e à nossa rebeldia contra o esgotamento, a estupidez, a monotonia, a falta de sentido do nosso trabalho e da nossa vida, contra o desprezo que suscita o nosso trabalho; contra a despótica hierarquia da indústria; contra uma sociedade na qual somos as desamparadas, na qual nos negam os bens e as diversões que outras classes consideram normais, e que a contragosto dividem apenas partes deles, como se estivéssemos a pedir um privilégio. Não temos palavras para dizer como é e como se sentem ser trabalhadoras, que nos olhem com receio, que nos dêem ordens pessoas que têm mais e que pretendem saber mais e que nos obrigam a trabalhar conforme as regras que elas fixam para os seus próprios fins, não para os nossos. E não temos palavras para dizer tudo isto porque a classe dominante monopolizou não apenas o poder de tomar decisões e a riqueza material; monopolizou também a cultura e a linguagem.
..................................................................................André Gorz


A injustiça, como defendi, deveria definir-se principalmente em termos dos conceitos de opressão e dominação, antes de distribuição. O racismo e o sexismo são a principal expressão das formas de opressão na nossa sociedade. A discussão filosófica sobre a injustiça de género e a injustiça racial tende a restringir-se na sua maior parte a questões de igualdade de oportunidades, focalizar-se predominantemente sobre a questão de saber se são justos os programas de acção afirmativa que dão preferência às mulheres ou às pessoas de cor para igualar as suas oportunidades.

Neste capítulo sugiro que os programas de acção afirmativa questionam os princípios de igualdade liberal mais directamente do que aquilo que muitos e muitas dos seus defensoras estão dispostos a admitir, e que tornar explícitas essas questões fortalece os argumentos a favor destes programas. Em particular, a acção afirmativa questiona a primazia de um princípio de não discriminação e a convicção de que as pessoas deveriam ser tratadas apenas como indivíduos e não como membros de grupos. Todavia, a discussão sobre a igualdade de oportunidades da qual o debate sobre a acção afirmativa é apenas uma parte, representa um modo de pensar bastante limitado sobre a justiça racial e de género. Defendo que o debate sobre a acção afirmativa é uma instância da aplicação do paradigma distributivo da justiça. Este define a justiça racial e de género em termos da distribuição de posições privilegiadas entre os grupos, e não põe em causa temas relativos à organização institucional e ao poder de tomar decisões.

A maior parte deste capítulo analisa e questiona dois pressupostos sobre a organização institucional que, amiúde, subjazem às discussões sobre a igualdade de oportunidades, pressupostos cuja justiça não se questiona. Tanto no âmbito da filosofia como da política, dá-se geralmente por garantida – e portanto por não justa – uma divisão hierárquica do trabalho com posições escassas de cargos elevados, poder e prestigio no topo, e posições menos privilegiadas na base. Também se assume que estas posições deveriam estar distribuídas consoante o mérito, medindo a competência técnica individual das pessoas e outorgando as posições mais competitivas àquelas que se julgue serem mais qualificadas em função de regras imparciais de competência. Questionarei aqui estes dois pressupostos.

Para aplicar o princípio do mérito deve ser possível identificar, medir, comparar e qualificar a actuação individual em tarefas relativas ao trabalho usando critérios que fossem normalmente e culturalmente neutros. Para a maior parte dos trabalhos, todavia, isto não é possível, e a maioria dos critérios de avaliação usados na nossa sociedade, incluindo as referências educativas e as avaliações padronizadas, possuem conteúdo normativo e cultural. Dado que não existem regras de mérito imparciais, valorativamente neutras e científicas, defendo que uma questão central da justiça deve ser sobre quem decide quais são as aptidões adequadas para uma certa posição, como se valorizam certas atitudes, e se os indivíduos reais as possuem.

Se a avaliação objectiva, valorativamente neutra do mérito é difícil ou impossível, a legitimidade de uma divisão hierárquica do trabalho vê-se seriamente questionada. Não defendo que qualquer divisão de tarefas e funções seja incorrecta, mas apenas a divisão entre o desenho das tarefas e a sua execução, que aparece na divisão de classes sociais entre trabalhos profissionais e não profissionais. Esta divisão dá lugar a que apenas relativamente poucas pessoas desenvolvam e exerçam as suas capacidades. Tal divisão submete a maioria das pessoas a estruturas de dominação e muita gente à opressão da exploração, à ausência de poder e ao imperialismo cultural. O desenvolvimento da democracia no trabalho pode contribuir muito para remediar esta injustiça, mas uma democracia na qual o trabalho conserve a divisão do trabalho existente não é suficiente. As relações de conhecimento, autonomia e cooperação devem reestruturar-se na definição de tarefas para reduzir ou minar a opressão.»

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