segunda-feira, 30 de junho de 2008

Iris Marion Young, “A Acção Afirmativa e o Mito do Mérito” (Parte IV)

«O mito do mérito

Um princípio de justiça amplamente defendido na nossa sociedade é que as posições e as recompensas deveriam distribuir-se de acordo com o mérito individual. O princípio do mérito defende que as posições deveriam ser concedidas aos indivíduos melhor qualificados, quer dizer, àquelas pessoas que tenham as melhores aptidões e capacidades para levar a cabo as tarefas que esses cargos requerem. O princípio é central para legitimar uma divisão hierárquica do trabalho numa sociedade liberal democrática que assume que todas as pessoas possuem igual valor moral e político. Ao assumir como dada a divisão estrutural entre algumas escassas posições altamente remuneradas e um grande número de outras pior remuneradas, o princípio do mérito afirma que esta divisão do trabalho é justa quando nenhum grupo recebe posições de privilégio por nascimento ou direito, ou em virtude de características arbitrárias tais como a raça, a etnia ou o sexo. A hierarquia injusta das castas é substituída por uma “hierarquia natural” da inteligência e da capacidade.


Como deveria interpretar-se este princípio do mérito, e se deveria funcionar como princípio de distribuição de posições e recompensas, é matéria de controvérsia. Rawls, por exemplo, defende que usar os talentos naturais como critério para atribuir posições pode considerar-se tão arbitrário como atribui-los em função da raça ou do sexo, porque uma pessoa é tão pouco responsável pelos seus talentos como pela sua raça (Rawls, 1971, pp. 101-4; cfr. Sandel, 1982, pp. 72-82). Assim, há quem defenda que o esforço e as realizações deveriam constituir uma grande parte do critério do mérito (por exemplo, Nielsen, 1985, pp. 104-12). Há até quem defenda que um princípio de distribuição de acordo com o mérito deveria aplicar-se apenas depois de terem sido satisfeitas as necessidades básicas de todas as pessoas (Sterba, 1980, pp. 47-62; Nielsen, 1985, 1985, cap. 6; Galston, 1980, 162-70, 197-200). Outras questionam se o princípio do mérito tem alguma razão moral, defendendo que as exigências de eficiência ou produtividade não podem sustentar as exigências de direitos ou merecimento (Veja-se Daniels, 1978).

James Fishkin, no seu minucioso e atento estudo sobre o conflito de valores que percebe nos objectivos da igualdade de oportunidades, define o princípio do mérito dizendo que implica “uma equidade processual ampla na avaliação das qualificações para as posições” (Fishkin, 1983, p. 22). A equidade processual requer que os processos de avaliação “estejam de acordo com o modelo de competência imparcial”. As qualificações são “critérios relativos ao trabalho que podem ser correctamente interpretados como indicadores de competência ou motivação para o rendimento de um indivíduo de uma dada posição”. A educação, a história laboral, os resultados das avaliações correctamente proporcionados, ou outras mostras da capacidade ou esforço, diz Fishkin, podem utilizar-se para julgar as qualificações. Uma valorização justa das qualificações de um indivíduo deve assentar na avaliação das tarefas relevantes, passadas ou presentes, realizadas pela própria pessoa; a determinação das qualificações não pode assentar em inferências estatísticas (Fishkin, 1983, pp. 23-4).
Utilizar um princípio do mérito para atribuir posições escassas e desejáveis numa hierarquia laboral – e nas instituições educativas que prepararam as pessoas para esses trabalhos – será justo apenas se forem cumpridas várias condições. Em primeiro lugar, as qualificações devem definir-se em termos de capacidades técnicas e competência, independentemente do respeito por outros valores e por outras culturas, e de forma neutra relativamente a ambas as circunstâncias. Por competência técnica entendo a competência para produzir resultados específicos. Se o critério do mérito não distingue entre capacidades técnicas e atributos normativos ou culturais, não há forma de separar o facto de uma pessoa ser “boa” trabalhadora num certo sentido, de pertencer a classe de pessoa desse tipo – com os antecedentes indicados, um certo estilo de vida, etc. Em segundo lugar, para justificar as diferenças quanto aos privilégios laborais, as capacidades puramente técnicas e as competências devem ser “relativas ao trabalho”, no sentido de que podem predizer um desempenho excelente no seu cargo. Em terceiro lugar, para dizer que um indivíduo é mais qualificado do que outro, o seu desempenho e o desempenho que se tenha podido prever deve ser comparável e qualificável de acordo com regras que sejam independentes dos valores e da cultura, e neutras relativamente a ambas as circunstâncias.

Aqueles que defendem o princípio do mérito raramente duvidam de que estas condições se possam alcançar. Fishkin, por exemplo, considera óbvio que a competência técnica dos indivíduos se possa medir e prever com independência quanto a valores, propósitos e normas culturais. “É difícil acreditar – diz o autor – que numa sociedade moderna com uma diferenciação de tarefas complexa não se possam definir qualificações relacionadas com o trabalho dos indivíduos para prever melhores resultados” (Fishkin, 1983, p. 56). Pode ser que seja difícil de acreditar, mas é um facto que tais regras normativa e culturalmente neutras do desempenho individual não existem na maioria dos trabalhos. A ideia de um critério objectivo e não enviesado relativamente aos atributos pessoais é uma versão do ideal de imparcialidade, e é simplesmente impossível.

Em primeiro lugar, a maioria dos trabalhos são demasiado complexos e multifacetados para permitir uma identificação precisa das suas tarefas de tal forma que possa vir a medir os níveis de desempenho nessas tarefas. Só são possíveis regras para avaliar o desempenho no trabalho que sejam precisas, valorativamente neutras e específicas de algumas tarefas, para trabalhos com um número limitado de funções definíveis, cada uma das quais é uma tarefa completa e claramente identificável que requer pouca habilidade verbal, imaginação ou sentido crítico (Fallon, 1980). Os trabalhos de introdução de dados ou de classificação do controlo de qualidade poderiam satisfazer estes requisitos, mas uma grande quantidade de trabalhos não satisfazem. Um agente de viagens, por exemplo, deve fazer documentos, comunicar eficientemente por telefone e através do computador com redes de informação em constante alteração, e estudar e ter à mão opções de pacotes turísticos para muitos destinos. O trabalho no sector de serviços, um sector de trabalho em grande expansão, em geral dificilmente pode ser avaliado com base em critérios de produtividade e eficiência aplicados à produção industrial, porque faz muito menos sentido contar os serviços prestados do que os produtos que saem na linha de montagem.

Em segundo lugar, nas complexas organizações industriais e administrativas, é frequentemente impossível identificar a contribuição feita por cada indivíduo, precisamente porque trabalhadores e trabalhadoras cooperam para produzir um resultado ou um produto. O desempenho de um grupo, um departamento ou uma empresa, poderia medir-se, mas isto é de pouca utilidade para justificar o cargo ou o nível de remuneração de qualquer um dos membros do grupo (Cfr. Offe, 1976, pp. 54-7; Collins, 1979, p. 31).

Em terceiro lugar, uma quantidade enorme de trabalhos requer ampla discricionariedade por parte do trabalhador relativamente ao que faz e ao modo de o fazer melhor. Em muitos trabalhos, o papel do trabalhador é mais negativo que positivo; ele ou ela vigiam um processo e intervêm para evitar que algo possa correr mal. Nos processos automáticos, desde as máquinas consideradas individualmente até à fábrica na sua totalidade, por exemplo, trabalhadores e trabalhadoras contribuem pouco com a sua rotina para a factura real das coisas, mas devem estar vigilantes no manejo das máquinas para assegurar que o processo decorra como é devido. O papel negativo aumenta a discricionariedade de quem está a trabalhar sobre se deve ou não intervir, e sobre quando e quantas vezes. Talvez haja um modo mais facilmente identificável e mensurável de desempenhar muitas acções positivas. Mas há muitos modos de prevenir que um processo corra mal, e geralmente não é possível medir o nível de produtividade de um trabalhador em termos de custos em que incorreria se ele ou ela tivessem intervindo, ou dos custos que poderiam ter sido evitados se ela ou ele tivessem intervindo de maneira diferente (Offe, 1976, p. 56).

Por último, a divisão do trabalho, na maioria das grandes organizações, significa que quem avalia o desempenho de um trabalhador não está frequentemente familiarizado com o processo de trabalho real. As modernas hierarquias organizativas são o que Claus Offe denomina de hierarquias descontínuas de tarefas (Offe, 1976, pp. 25-8). Numa hierarquia contínua de tarefas, como a exemplificada pela produção dos grémios medievais, as ou os superiores fazem o mesmo tipo de trabalho que os seus subordinados ou subordinadas, mas com maior grau de capacidade e competência. Nas hierarquias descontínuas de tarefas das organizações actuais, as escalas laborais estão muito separadas. As dos superiores não fazem o mesmo tipo de trabalho que os seus subordinados ou subordinadas, e podem até nunca ter feito esse trabalho. Assim, quem é superior frequentemente não é competente para avaliar o desempenho do trabalho técnico em si, e deve confiar na avaliação das atitudes das trabalhadoras e trabalhadores, na sua obediência às normas, na sua auto-apresentação, na sua capacidade de cooperação, quer dizer, no seu comportamento social.»
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