segunda-feira, 2 de junho de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte II)

«Liberdades antiga e moderna

Considere um dilema familiar associado à ideia de remeter a legitimidade para a autorização popular[1]. Por um lado, a democracia pode ser considerada como uma questão acerca do procedimento mais apropriado para fundamentar a legitimidade; algumas escolhas colectivas democráticas são demasiado execráveis para serem legítimas, por mais atraentes que sejam os procedimentos que as tenham produzido. Por outro lado, a ideia de democracia parece excluir toda e qualquer base rival de legitimidade. A democracia parece ser a forma de escolha colectiva autorizada pela ideia fundamental de que os cidadãos têm de ser tratados como iguais. Assim, a democracia é comummente pensada para ser a forma segundo a qual devemos decidir como temos de ordenar os nossos valores políticos, e não simplesmente um valor político a ser combinado com outros.

Este dilema é familiar a partir das discussões da democracia e das "liberdades dos modernos" - religiosa, de consciência de modo mais geral, de pensamento e expressão, e direitos da pessoa e da propriedade pessoal. Na ausência de qualquer conexão evidente com as condições do procedimento democrático, tais liberdades são comummente compreendidas como constrangimentos para o processo democrático. Não é assim com as liberdades políticas. Uma constituição que torna o governo incapaz de restringir a participação política ou de regular o conteúdo do discurso político, pode ser interpretada como uma salvaguarda do processo democrático, em vez de um constrangimento. As garantias dessas liberdades políticas ajudam a preservar a conexão entre autorização popular e resultado político - a preservar a continuação da autoridade do povo, e não simplesmente da sua maioria[2]. Estas liberdades - as liberdades dos antigos - são elementos constitutivos de processo democrático.

As coisas são diferentes quando se chega à privação da liberdade religiosa, ou às restrições sobre a liberdade de expressão, cujos conteúdos podem ser interpretados como sendo políticos somente numa interpretação inutilmente vasta do "político”. Nestes casos, as condições incapacitantes numa constituição parecem simplesmente limitar a democracia, não estando entre as suas pré-condições implícitas ou explícitas.

As liberdades dos modernos parecem, então, estar fundamentadas sobre valores inteiramente independentes dos valores da democracia. E este aspecto pode levar a conclusões indesejáveis. A primeira é a de que as liberdades políticas são meramente instrumentais, valiosas na medida em que protegem as liberdades dos modernos; quando falham em assegurar tal proteção, uma autoridade externa ao povo deve fazê-lo. Aqui, o conflito entre a democracia e outros valores políticos é facilmente traduzido num conflito entre procedimentos democráticos e anti-democráticos da tomada de decisão política[3].

Uma segunda visão sustenta que as liberdades dos modernos não têm um status mais fundamental do que o do consenso popular contingente. Assim, ainda que as privações de liberdades não políticas que emergem de processos democráticos equitativos possam ser injustas, essas privações não se defrontam com problemas de legitimidade democrática[4].

Somos impelidos para esse dilema por uma compreensão particular de democracia, que chamarei "agregativa" - para a diferenciar da concepção deliberativa[5]. De acordo com uma concepção agregativa, a democracia institucionaliza um princípio que exige a consideração igual para os interesses de cada membro; ou, mais precisamente, a consideração igual junto com a "suposição da autonomia pessoal" - a compreensão de que os membros adultos são os melhores juízes e os defensores mais vigilantes dos seus próprios interesses[6]. Assim, criticar processos como sendo não democráticos consiste em afirmar que esses processos falham em atribuir uma consideração igual aos interesses de cada membro. O método natural para atribuir essa consideração é estabelecer um esquema de escolha colectiva - a regra da maioria ou da pluralidade, ou a negociação de grupo - que atribua um peso igual aos interesses dos cidadãos, em parte capacitando-os para apresentar e promover os seus interesses. E isto requer uma estrutura de direitos de participação, associação e expressão.

Pode-se argumentar que uma concepção agregativa pode ser ampliada para além desses direitos directamente procedimentais em direcção a algumas preocupações sobre os resultados. Pois pode-se dizer que as escolhas colectivas que dependem de visões discriminatórias - sobre a hostilidade ou a estereotipização - não atribuem peso igual aos interesses de cada um que é governado por tais decisões. E quando encontramos resultados que provavelmente prejudicam as pessoas discriminadas por tais visões, temos uma evidência forte do fracasso do processo para atribuir consideração igual aos interesses de cada um[7].

No entanto, esta reinterpretação procedimental dos valores políticos importantes pode ir muito longe. A liberdade religiosa, por exemplo, não tem uma base procedimental evidente. Certamente que privações da liberdade de culto são algumas vezes problemáticas por resultarem de atitudes discriminatórias (anti- católicos, anti-semitas). Quando ocorrem, as proteções das liberdades religiosas surgirão da exigência de consideração igual. Mas o fracasso na atribuição de um peso apropriado à necessidade das convicções religiosas não reflecte ódio, discriminação ou estereótipos à pessoa - nem deve depender de qualquer outro meio convencional de degradação de uma pessoa ou de falhar em tratá-Ia como igual. O problema pode ter uma fonte diferente: pode caracterizar uma falha em considerar seriamente o vigor ou o peso das exigências colocadas sobre a pessoa pelas suas convicções religiosas ou morais razoáveis - não a intensidade com que ela sustenta essas convicções, que aparece na visão agregativa - mas o vigor ou o peso das exigêncis impostas pelas convicções, em virtude do seu conteúdo[8]. É precisamente esse vigor que instiga razões de magnitude particularmente elevada para superar estas exigências. Mas essas considerações sobre o vigor relativo das exigências estão ausentes da concepção agregativa; assim, por essa razão, coloca-se a necessidade de encontrar razões de grande peso antes de superar essas exigências. Esta é uma deficiência fundamental, e constitui a fonte do dilema que delineei anteriormente.

Uma concepção deliberativa de democracia não enfrenta os mesmos problemas acerca da reconciliação da democracia com as liberdades não-políticas e outras exigências substantivas não-procedimentais. Por aceitar o facto do pluralismo razoável, é cuidadosa com o vigor das exigências às quais os agentes estão sujeitos, e por isso não apresenta a sua concepção de democracia ou de decisão colectiva de um modo exclusivamente procedimental. Para fundamentar isso, esboçarei primeiro as ideias principais de uma visão deliberativa; depois mostrarei como, a partir da concepção deliberativa, podemos acomodar o facto do pluralismo razoável sem endossar uma concepção de democracia completamente procedimental. Particularmente, mostrarei como as liberdades dos modernos e outras condições substantivas são elas mesmas elementos de um ideal institucional de democracia deliberativa.»
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[1] Por "remeter a legitimidade à autorização popular" quero considerar esta autorização como uma condição suficiente para o exercício do poder político.
[2] Veja-se John Hart Ely, Democracy and distrust, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1980; e Robert Dahl, Democracy and its critics, New Haven: Yale University Press, 1989.
[3] Veja-se as preocupações de Dahl sobre a revisão judicial em Democracy and its critics, p. 183.
[4] É claro que o pluralista democrático pode sustentar que semelhantes violações são injustas e que as pessoas devem rejeitá-Ias.
[5] Sobre a distinção entre as visões agregativa e deliberativa, e a sua relação com a possibilidade de reconciliar os compromissos com os valores da liberdade e da igualdade numa concepção de democracia, veja-se a minha resenha de Democracy and its critics, de Dahl, no Journal of Politics, 53,1991, p. 221-225. Para uma discussão da distinção relativa entre concepções estratégica e deliberativa, veja-se David Estlund "Who’s afraid of deliberative democracy? On the strategic/deliberative dichotomy in recent constitutional jurisprudence", Texas Law Review, v. 7, n. 7, jun. 1993, pp. 1437-1477. Estlund identifica as teorias estratégicas com as visões que fazem uso da ideia de maximização de utilidade. Penso que a questão crucial é saber se uma concepção de democracia enfatiza a ideia de fornecer razões que sejam aceitáveis para os outros.
[6] Em Democracy and its critics, cap.s 6-8, Robert Dahl deriva as condições sobre o procedimento democrático a partir do princípio de consideração igual e da suposição da autonomia pessoal.
[7] Quando, por exemplo, a legislação se fundamenta em classificações raciais - pelo menos sobre uma classificação racial maligna -, temos razão para suspeitar que preferências discriminatórias inspiraram a legislação. E se o fizeram, então o pedigree da regulação democrático-procedimental é evidentemente corrupto. Veja-se Ely, Democracy and distrust, cap. 6; e Ronald Dworkin, Law's empire. Cambridge, Mass.; Harvard University Press, 1986, cap. 10. Para uma visão menos sociopsicológica do pedigree procedimental inaceitável, veja-se Bruce Ackerman, "Beyond carolene products", Harvard Law Review, 98,1985, pp. 713-746. Infelizmente, a Corte Suprema tem recentemente endossado a visão de que "classificação racial maligna" é um pleonasmo, e "classificação racial benigna" uma contradição em termos. Veja-se Richmond v. Croson, 488 U.S., 469, 1989; Shaw v. Reno, 113 S. Ct. 2816, 1993; e Miller v. Johnson, slip op. 1995. Para uma visão alternativa, vej-se a Metro Broadcasting v. FCC, 497 U.S. 347,1990.
[8] A distinção entre direitos exigidos para prevenir a discriminação e direitos exigidos para proteger interesses fundamentais desempenha um papel central na doutrina da protecção igual. Veja-se Laurence Tribe, American constitutional law, Mineola, N. Y.: Foundation Press, 1988, cap. 16. Sobre a importância de dar atenção ao conteúdo das visões na explanação do exercício livre, veja-se Ronald Dworkin, Life's dominion, New York: Knopf, 1993, pp. 162-166.

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