segunda-feira, 16 de junho de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte III)

«Democracia deliberativa
A concepção de democracia deliberativa está organizada em torno de um ideal de justificação política. De acordo com esse ideal, justificar o exercício do poder político colectivo é proceder com base na argumentação pública livre entre iguais. Uma democracia deliberativa institucionaliza esse ideal. Não é simplesmente uma forma de política. Na concepção deliberativa, a democracia é uma estrutura de condições sociais e institucionais que facilita a discussão livre entre cidadãos iguais - proporcionando condições favoráveis de participação, associação e expressão - e vincula a autorização para exercer o poder público (e o próprio exercício) a essa discussão - estabelecendo uma estrutura que lhe assegura a responsividade (responsiveness) e responsabilidade (accountability) do poder político por meio de eleições competitivas regulares, condições de publicidade, supervisão legislativa, e assim por diante.
[1]

Voltarei mais tarde com maior detalhe às condições para institucionalizar a deliberação. Mas primeiro pretendo dizer algo mais sobre a própria ideia de justificação deliberativa.

Uma concepção deliberativa coloca o raciocínio público no centro da justificação política. Digo "raciocínio público" em vez de "discussão pública", visto que uma visão deliberativa não pode ser distinguida simplesmente pela sua ênfase na discussão em vez da negociação ou do voto. Qualquer concepção de democracia - na verdade, qualquer concepção da tomada inteligente de decisão política - verá a discussão como algo importante, ainda que apenas devido ao seu papel essencial para combinar informações contra um pano de fundo de assimetrias na sua distribuição. A democracia deliberativa também não se caracteriza pelo pressuposto de que a discussão política pretende mudar as preferências dos outros cidadãos. Embora a concepção deliberativa deva assumir que os cidadãos estão dispostos a serem persuadidos por razões que podem entrar em conflito com as suas preferências e interesses anteriores, e de que serem persuadidos dessa forma pode transformar essas preferências e interesses anteriores[2], ela não supõe que a deliberação política tome como seu objectivo a alteração das preferências. Também não se distingue por apoiar uma concepção epistémica do voto, de acordo com a qual os votos são interpretados como expressões de crenças sobre a resposta correcta a uma questão política, em vez de preferências sobre que política pública deve ser implementada[3].

A concepção de justificação que fornece o núcleo do ideal de democracia deliberativa pode ser apreendida através num procedimento ideal de deliberação política. Nesse procedimento, os participantes consideram-se mutuamente como iguais; eles visam defender e criticar as instituições e os programas tendo como critério as considerações que os outros têm razões para aceitar, dado o facto do pluralismo razoável e a suposição de que esses outros são razoáveis; e eles estão dispostos a cooperar de acordo com os resultados dessas discussões, tratando esses resultados como vinculativos.

Que tipo de considerações contam como razões? Uma resposta adequada não tomará a forma de uma descrição genérica das razões, mas sim a de uma afirmação sobre que considerações contam a favor de propostas num arranjo deliberativo condizente com uma associação livre entre iguais, onde se assume que tal arranjo inclui o reconhecimento do pluralismo razoável. Este pano de fundo reflecte-se nos tipos de razões que seriam aceitáveis. Num cenário deliberativo idealizado, não bastará simplesmente propor razões que se assume como sendo certas ou plausíveis: essas considerações podem ser rejeitadas por outros que são eles mesmos razoáveis. Em vez disso, deve-se encontrar razões que sejam plausíveis para os outros, reconhecendo esses outros como iguais, cientes de que eles têm compromissos razoáveis alternativos, e conhecendo alguma coisa sobre os tipos de compromissos que eles podem provavelmente ter - por exemplo, podem ter compromissos morais ou religiosos que lhes imponham obrigações consideradas dominantes. Se uma consideração não satisfazer este teste, isso será suficiente para a rejeitar como uma razão. Se satisfazer, então contará como uma razão política aceitável.

Certamente que a caracterização precisa das razões aceitáveis, e do seu peso apropriado, variará consoante as concepções. Por esta razão, nem mesmo um procedimento deliberativo ideal produzirá, em geral, um consenso. Mas mesmo que haja divergência, e a decisão for feita segundo a regra da maioria, os participantes podem recorrer a considerações que sejam, de um modo geral, reconhecidas como tendo um peso considerável e uma base adequada para a escolha colectiva, mesmo entre pessoas que discordam sobre qual seja o resultado correcto: quando os participantes limitam os seus argumentos a essas razões, o próprio apoio da maioria valerá comummente como razão para aceitar a decisão como legítima.

Para sublinhar este ponto sobre a importância do contexto de fundo na explanação das razões políticas aceitáveis, pretendo esclarecer a diferença entre a ideia de aceitação razoável tratada aqui e a ideia de rejeição razoável no contratualismo de Scanlon[4]. Scanlon caracteriza o carácter errado da conduta em termos da ideia de uma regra "que ninguém poderia razoavelmente rejeitar", e desenvolve essa caracterização como parte de uma explicação geral do conteúdo da moralidade e da natureza da motivação moral. Assim, a sua explicação da razoabilidade - dos fundamentos razoáveis para rejeitar princípios - é exigida para configurar geralmente, mesmo em cenários sem qualquer cooperação contínua, laços institucionais ou o pano de fundo de igualdade entre os cidadãos.

A minha preocupação não é com as razões em geral, ou com moralidade em geral, ou com a deliberação política em geral, ou com as razões adequadas para a discussão democrática, mas com a visão sobre as implicações da democracia, dado um pano de fundo específico. E esse pano de fundo restringe o que pode contar como uma razão aceitável no interior do processo de deliberação, pois ao aceitar o processo democrático, concorda-se que os adultos têm de ter, mais ou menos sem excepção, acesso a ele, então não se pode aceitar como uma razão no interior desse processo que alguns valham menos do que outros ou que os interesses de um grupo valham menos do que os de outros. E tais constrangimentos sobre as razões vão limitar os resultados substantivos do processo; eles complementam os limites impostos pela ideia genérica de um procedimento justo de dar razões.

Não estou aqui a levantar objecções à visão de Scanlon. O seu tópico é diferente - a moralidade em geral como algo distinto da legitimidade democrática. Em vez disso, estou a instar que essa diferença quanto ao pano de fundo faz diferença relativamente ao tipo de razões que são adequadas aos dois casos.

Para concluir estas observações sobre a concepção deliberativa, pretendo enfatizar que as suas virtudes estão estreitamente associadas à sua concepção de escolha colectiva vinculativa, em especial com o papel que nesta concepção desempenha a ideia de razões aceitáveis aos outros que são governados por essas escolhas, e que eles próprios têm concepções razoáveis. Ao exigir razões aceitáveis aos outros, a concepção deliberativa propõe um quadro plausível das relações possíveis entre pessoas no interior da ordem democrática.

Para ver o carácter dessas relações, deve observar-se inicialmente que a concepção deliberativa oferece uma versão mais poderosa do que a concepção agregativa da ideia democrática fundamental - a ideia de que as decisões sobre o exercício do poder do Estado são colectivas. Isto exige que tenhamos de fornecer considerações que outros (cuja conduta será governada pelas decisões) possam aceitar, e não simplesmente que consideremos os seus interesses na hora de decidir o que fazer, ainda que cruzemos os dedos para que esses interesses não tenham influência. Portanto, a ideia de autorização popular não se reflecte apenas no processo de tomada de decisão, mas na forma - e, veremos mais adiante, no conteúdo - da própria razão política.

Este ponto sobre a força da visão deliberativa e a sua concepção de decisões colectivas pode ser enunciado segundo a ideia de comunidade política. Se a comunidade política depende do facto de se compartilhar uma concepção moral ou religiosa abrangente, ou uma identidade nacional substantiva definida segundo essa concepção, então o pluralismo razoável arruína a possibilidade da comunidade política. Mas uma concepção alternativa de comunidade política liga a visão deliberativa ao valor da comunidade. Particularmente, ao exigir a justificação segundo termos que sejam aceitáveis para os outros, a democracia deliberativa estimula uma forma de autonomia política: que todos aqueles que são governados por decisões colectivas - dos quais se exige que governem as suas condutas próprias por meio dessas decisões - devem achar aceitáveis os fundamentos para essas decisões. E nessa afirmação de autonomia política, a democracia deliberativa assegura um elemento importante do ideal de comunidade. Não porque as decisões colectivas cristalizem uma perspectiva ética compartilhada que orienta toda vida social, nem porque o bem colectivo assuma prioridade sobre as liberdades dos membros, mas porque a exigência de fornecer razões aceitáveis ao exercício do poder político para aqueles que são governados por ele - uma exigência ausente da visão agregativa - expressa a pertença igual de todos no corpo soberano responsável pela autorização do exercício desse poder.

Para explicar de forma mais completa o ideal deliberativo, pretendo agora explorar algumas das suas implicações: as condições que precisam ser satisfeitas pelos arranjos sociais e políticos que, no interior da configuração do Estado moderno, institucionalizam a justificação deliberativa. Que condições precisam esses arranjos satisfazer para que possam sustentar a pretensão de que estabelecem as condições para o raciocínio livre entre iguais, e que enraízam a autorização para o exercício do poder do Estado nessas condições?

Como resposta parcial, indicarei por que a democracia deliberativa precisa assegurar as liberdades dos modernos. Então, ligarei a concepção deliberativa às concepções do bem comum e da igualdade política.»
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[1] Sobre o papel da ideia de democracia como algo mais que uma ideia política, veja-se Gordon Wood, The Radicalism of the American Revolution. New York: Knopf, 1992, esp. p. 232.
[2] Veja-se Cohen, "Deliberation and democratic legitimacy", p.24.
[3] Sobre a ideia de uma concepção epistémica, veja-se Jules Coleman e John Ferejohn, "Democracy and social choice", Ethics, 97, Out. 1986, p. 6- 25; e Joshua Cohen, "An epistemic conception of democracy', Ethics, 97, Out. 1986, p. 26-38.
[4] T. M. Scanlon."Contractualism and utilitarianism", in Amartya Sen e Bemard Williarns (eds.), Utilitarianism and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. O ponto de contraste no texto é motivado pela discussão de Scanlon sobre o papel do raciocínio maximim no contratualismo moral, em "What do we owe each other? (unpublished typescript, Julho 1994) Cap. 5, p. 47-54.

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