quarta-feira, 4 de junho de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte V)

«A consideração igual de interesses e a importância da deliberação pública

Esta descrição dupla da importância da deliberação pode ser fundamentada inteiramente por um princípio de consideração igual de interesses. O argumento, que apresentei amplamente noutro lugar[1], prossegue ao longo das seguintes linhas. Quando houver conflito de interesses, a justiça exige que os interesses dos indivíduos sejam considerados de modo igual. Numa sociedade política, onde existem divergências consideráveis sobre o que são os interesses dos indivíduos, bem como sobre que tipos de política e de legislação incorporam a consideração igual de interesses, a principal incorporação pública da consideração igual de interesses está nas instituições que asseguram que cada indivíduo tenha voz igual na tomada de decisão colectiva. Isto gera o princípio de uma pessoa, um voto nas questões públicas, e exige que outras formas relevantes de poder social sejam distribuídas de acordo com um princípio de igualdade. Ao contrário do que têm dito muitos críticos, o argumento anterior mostra que o princípio da igualdade política fornece uma explicação poderosa sobre a importância da deliberação pública numa sociedade política. A igualdade nas condições cognitivas de tomada de decisão, como argumentei antes, é uma condição necessária para a igualdade política. Por isso, a justiça exige tal igualdade. Segundo esta explicação, ainda que a deliberação pública não seja, ela própria, uma exigência da justiça, quando há deliberação pública, a justiça exige que cada um seja capaz de nela participar como um igual.

Aqui temos de lidar com uma possível objecção à descrição anterior. Sendo que o princípio da igualdade na deliberação pública é justificado como uma solução para o conflito de interesses, pode ser obscuro saber como o princípio se aplica a controvérsias sobre justiça económica e civil. Alguém poderia contestar a minha explicação com base no argumento de que, nesses casos, desde que cada um tenha os mesmos interesses - encontrar a concepção correcta de justiça -, aparentemente não existe conflito de interesses. O opositor poderia concluir que a igualdade na deliberação pública não é exigida neste contexto; e uma vez que esse é um contexto no qual a deliberação pública parece mais desejável, alguém poderia duvidar que o princípio da consideração igual de interesses pudesse fornecer uma explicação adequada para a importância intrínseca da igualdade na deliberação pública. Respondo a estas objecções mostrando que interesses importantes conflituam quando os cidadãos promovem concepções de justiça e de bem comum opostas. Existem de facto quatro tipos destes interesses. Em primeiro lugar, existe o interesse pelo reconhecimento. Cada pessoa está interessada em ser levada a sério pelos outros. Quando as concepções de um indivíduo são ignoradas ou não são ponderadas, isso enfraquece o seu sentimento de respeito próprio, no qual possui um profundo interesse. Cada indivíduo tem interesse em ver ouvida e levada em consideração a sua concepção de justiça no processo de discussão de tais questões. Estes interesses pelo reconhecimento conflituam na medida em que indivíduos defendem concepções de justiça opostas. Em segundo lugar, as concepções de justiça reflectem frequentemente de modo desproporcional os interesses daqueles que as sustentam. Existe a tendência para o aparecimento de preconceitos cognitivos na elaboração e na defesa pública de concepções de justiça, particularmente em contextos de conflitos políticos reais. O preconceito cognitivo é natural, já que os indivíduos são provavelmente mais sensíveis e compreensivos para com os seus próprios interesses do que para com os dos outros. Em comunidades complexas, em que as posições dos indivíduos na sociedade são bastante diferentes, esta tendência para o preconceito é acentuada. Se muitos defendem concepções de justiça que reflectem os seus interesses, aqueles que perdem a oportunidade de defenderem a sua própria concepção serão mal sucedidos. Será evidente para qualquer pessoa excluída ou sub-representada que o processo está a tratar os seus interesses e pontos de vista como sendo pouco valiosos para serem ouvidos no processo. Portanto, é provável que sérios conflitos de interesses acompanhem as controvérsias sobre a justiça, e que cada um esteja interessado em ter condições para articular e defender as suas próprias concepções sobre a questão. Um terceiro interesse associado à promoção de uma concepção de justiça é o de que uma pessoa provavelmente experimentará um sentimento de alienação e distância diante de um mundo social discordante de uma qualquer parcela do seu senso de justiça. Terá um sentimento de não pertença. Que os indivíduos têm este tipo de dificuldade pode ser visto a partir da experiência dos povos indígenas nas sociedades radicalmente diferentes das suas. Mas, quando existem menos divergências, esse sentimento de alienação pode ser vivenciado em níveis menores. O interesse num sentimento de pertença também tanto mais uma fonte de conflitos quanto mais os indivíduos difiram entre si quanto ao tipo de comunidade que lhes dá um sentimento de pertença. Um quarto interesse está relacionado com o facto de se alcançar uma concepção correcta da justiça. Se as pessoas estiverem racionalmente persuadidas, os argumentos que as conduziram à nova crença devem ter começado por apelar às suas crenças iniciais. As pessoas não são persuadidas por argumentos baseados em premissas em que não acreditam. Como consequência, num processo de discussão social, as concepções de cada pessoa devem ser levadas a sério, no caso de cada um ter a oportunidade de aprender com essa discussão. Mas as concepções de uma pessoa não serão levadas a sério nesse processo se esta não possuir o poder de influenciar a tomada de decisão política, ou se não possuir os meios para desenvolver a sua própria compreensão do bem comum, ou se as suas concepções carecerem de coerência ou consistência ou de qualquer base razoável. Finalmente, uma pessoa não será levada a sério se não possuir os meios para fazer ouvir as suas concepções num fórum público. Por que os outros deveriam tentar convencer alguém que não tem qualquer impacto na decisão, ou que é incapaz de articular a sua concepção, ou que provavelmente não sustenta a sua concepção por mais do que um curto período de tempo, quando existe tão pouco tempo para persuadir aquele que tem poder e compreende o que está em jogo? Assim, cada pessoa tem interesse em ter a sua própria concepção levada a sério na discussão, e os interesses dos cidadãos conflituam na medida em que há um espaço limitado para a discussão de todas as concepções. A única forma de tratar todos os interesses de igual modo é conceder-lhes participações iguais na autoridade política, e um factor essencial para isso é ter participações iguais no processo de deliberação pública.

Para evitar mal-entendidos, quando digo que os indivíduos têm interesse em promover as suas próprias concepções de justiça, não pretendo dizer que as suas concepções de justiça são meras máscaras para os seus próprios interesses ou que as suas concepções de justiça são meros meios para alcançarem os seus próprios interesses. É um facto fundamental que os seres humanos estão intensamente preocupados com questões de justiça económica e civil e preocupados em ter uma compreensão mais aguda dessas questões[2]. O conflito na sociedade política é frequentemente gerado por divergências difusas, mas sinceramente fundamentadas, sobre tais questões. Os quatro tipos de interesses descritos acima não são interesses que os indivíduos lutem por realizar quando propõem concepções de justiça; a realização desses interesses é um produto lateral de um processo em que vêem assegurada uma oportunidade de propor a sua própria concepção de justiça num mundo onde há incerteza sobre a verdade de qualquer concepção particular.

Uma nota final mostra como se conciliam, neste contexto, os méritos intrínseco e instrumental da deliberação pública entre iguais. Precisamente, devido ao facto dos interesses conflitantes, que surgem ao propor concepções de justiça opostas, não representarem tudo o que está em jogo na tomada de decisões democráticas, porque existe espaço para uma avaliação instrumental das instituições democráticas, que é complementar ao valor intrínseco que nelas encontramos. Cada um tem interesse em ver a justiça ser feita na sua sociedade, e, assim, o processo de tomada de decisão e deliberação pública deve ser pelo menos em parte avaliado em termos de saber se o objectivo da justiça é alcançado. Por outro lado, dada a opacidade da justiça social e as consequentes divergências sobre o que é e se é realizada, bem como os quatro interesses conflituantes antes descritos, cada pessoa tem uma pretensão justa a uma parte igual de recursos para tomar decisões e contribuir nas deliberações públicas.

Com estas considerações em mente, podemos agora ver o que expressa uma descrição mista da importância da deliberação. Primeiro, a deliberação pública aumenta a probabilidade da tomada de decisão numa sociedade democrática conduzir a bons resultados. A deliberação pública entre iguais pode realizar essa tarefa melhor do que a simpliciter deliberação pública, uma vez que aumenta a informação sobre os interesses de todos os diferentes grupos de pessoas na sociedade, e produz uma grande variedade de perspectivas sobre a justiça e o bem comum, segundo as quais qualquer concepção particular sobre essas questões pode ser testada e comparada. Enquanto que a deliberação pública per se é apenas instrumentalmente valiosa, a igualdade no processo de deliberação pública é uma exigência de um processo justo de deliberação pública. A igualdade é um tipo de constrangimento adicional sobre o modo como o processo de deliberação pública deve ser organizado. Por fim, a partir destes argumentos podemos ver que a deliberação pública e a igualdade neste processo são apenas alguns dentre uma variedade de valores importantes que a tomada de decisão democrática pode incorporar.»
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[1] Para o argumento completo a favor da justiça intrínseca da igualdade política fundada na consideração igual de interesses, veja-se o meu The Rule of the Many, cap. 2.
[2] Em The Rule of the Many, cap. 4, argumento que a preocupação com a justiça e o bem comum, não é apenas um facto sobre os seres humanos, mas deve ser também uma preocupação se na sociedade em que vivem deve haver oportunidade para incorporar algum tipo de ideal político.

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