domingo, 6 de julho de 2008

Iris Marion Young, “A Acção Afirmativa e o Mito do Mérito” (Parte V)

«Ainda que estes quatro obstáculos para uma definição e uma avaliação normativa e culturalmente neutra do desempenho no trabalho se apresentem em muitos tipos de trabalho, é no trabalho profissional e de gestão que são mais manifestos. Estes dois tipos de trabalho incluem geralmente uma grande variedade de capacidades e tarefas. A maioria destas tarefas, ou de todas elas, assenta no uso da capacidade crítica, da discrição, imaginação e acuidade verbal, e nenhuma destas qualidades é exactamente mensurável por alguma escala objectiva, valorativamente neutra. O êxito dos objectivos profissionais e de gestão implica geralmente uma complexa série de relações e dependências sociais, até ao ponto de por vezes ser pouco razoável responsabilizar os profissionais por não terem alcançado os objectivos (Rausch, 1985, pp. 87-1039. Por último, os trabalhos profissionais e de gestão são frequentemente avaliados não só por quem ocupa posições superiores numa hierarquia descontínua de tarefas, mas também por clientes que possuem pelo menos algum conhecimento da natureza dos trabalhos e das capacidades que estes exigem, e que, portanto, não estão em condições de aplicar critérios de desempenho técnico que sejam normativa e culturalmente neutros.

Se as posições profissionais e de gestão são ainda menos susceptíveis de ser avaliadas de acordo com valorações neutras do que outros trabalhos, então isto cria um problema especial para a legitimação de uma divisão hierárquica do trabalho. Dado que estes são os cargos mais escassos e melhor recompensados, e portanto os cargos em que se exige maior competência, é sobretudo para eles que se precisa de um critério de mérito valorativamente neutro. Para estes cargos não é suficiente que aqueles que tomam decisões sejam capazes de justificar que a pessoa escolhida possa realizar o trabalho; devem justificar também que entre todos os candidatos essa pessoa será a que melhor pode realizar esse trabalho. Para que pretensões comparativas deste tipo feitas sob condições de competência estrita sejam legítimas deve ser possível definir e medir com precisão a competência técnica dos indivíduos. Mas este requisito está menos presente precisamente naqueles trabalhos que são procurados por mais pessoas (Cfr. Fallon, 1980, p. 849; Wasserstrom, 1980a, p. 68).

Apesar do princípio do mérito exigir uma definição técnica imparcial das qualificações, os critérios realmente utilizados para determinar as qualificações tendem a abarcar ou incluir valores, normas e atributos culturais particulares – tais como se as pessoas avaliadas agem em conformidade com certas normas sociais, se promovem objectivos organizacionais especificamente definidos, e se demonstram competências e características sociais habitualmente valorizadas. As pessoas que trabalham nas fábricas são frequentemente avaliadas pela sua pontualidade, obediência, lealdade e atitude positiva; as que são profissionais poderiam ser avaliadas pela sua capacidade de expressão, pelo seu sentido de autoridade e pela sua capacidade para trabalhar eficazmente em grupo.

Permitam-me fazer finca-pé no facto de que usar critérios como estes não é necessariamente inadequado; a questão é que são critérios normativos e culturais e não cientificamente neutros. Quer dizer, estes critérios têm que ver com saber se a pessoa avaliada apoia e internaliza valores específicos, segue implícita ou explicitamente normas sociais de conduta, apoia objectivos sociais, ou mostra traços de carácter, conduta ou temperamento específicos, considerados desejáveis por quem avalia. O uso de critérios normativos e culturais, para além da competência técnica, com que tais critérios frequentemente se entrelaçam, é na maioria das vezes inevitável.

Os especialistas em avaliação do desempenho da gestão não ocultam o facto dos sistemas de avaliação do mérito não medirem imparcialmente a produtividade técnica. Um autor que escreve sobre o desempenho no trabalho define um critério de avaliação como “uma conduta ou um conjunto de condutas que a gestão valoriza suficientemente para que seja capaz de a descrever, prever (seleccionar em função dela), e/ou a controlá-la”. A escolha de critérios, admite esse autor, decorre de uma avaliação completamente “subjectiva” feita pela gestão, resultado do consenso entre gestores ou entre gestores e empregados (Blumfield, 1976, pp. 6-7; cfr. Sher, 1987b, p. 199).

Um estudo sobre as práticas de avaliação de desempenho torna manifesto que quem avalia o desempenho profissional ou de gestão baseia-se comummente em juízos relativos a traços definidos de forma ampla, tais como a liderança, a iniciativa, a cooperação, o sentido crítico, a criatividade ou a segurança, em vez dos resultados do desempenho e comportamentos mais específicos (Devrie e tal., 1980, p. 20). Os autores desse estudo consideram uma forma inferior de avaliação julgar com base em traços de personalidade ou de carácter, porque esses traços só podem ser definidos de forma vaga, fazendo assim com que a avaliação realizada pareça estar ligada aos propósitos e preferências dos avaliadores. Os autores desse estudo recomendam a gestão de objectivos como o sistema de avaliação mais objectivo e valorativamente neutro. Segundo este critério de gestão, avalia-se de acordo com o facto das pessoas em causa alcançarem os objectivos previamente definidos pelos supervisores ou pelos empregados e os supervisores conjuntamente, e em que medida os alcançam.

Ainda que seja seguramente mais objectiva que a avaliação segundo os traços de carácter, a gestão de objectivos dificilmente será valorativamente neutra, dado que os valores estão geralmente incorporados na definição dos objectivos. Rausch (1985, cap. 5) defende, para além disso, que a gestão de objectivos perdeu credibilidade porque frequentemente quem gere é incapaz de alcançar os seus objectivos por razões que estão fora do seu controlo. O autor defende que a avaliação do desempenho é inevitavelmente subjectiva e está carregada de valor, e por essa razão recomenda as avaliações feitas por pares e as avaliações feitas por vários supervisores em vez de um só.

Se a avaliação do mérito é inevitavelmente subjectiva e depende das valorizações de quem avalia, então a avaliação do mérito justificará a hierarquia apenas se quem avalia for imparcial no sentido forte de não estar influenciado pela perspectiva social de um grupo ou cultura em particular. Defendi no capítulo 4 que esse ponto de vista imparcial no âmbito público é uma ficção. Também o é nas instituições individualmente consideradas. A convicção de que quem avalia pode e deve ser neutro relativamente a grupos, à forma de vida e a normas culturais, na valorização do desempenho e da competência, mascara o seu contexto e parcialidade reais. Além do mais, como analisarei mais detalhadamente a seguir, esses métodos de avaliação imparciais ou objectivos são impossíveis mesmo considerando medidas quantificadas e testes padronizados.

No interior da divisão hierárquica do trabalho, quem avalia os méritos está numa posição superior à dos avaliados, ocupando cargos de relativo privilégio. Os seus critérios de avaliação reforçam frequentemente as normas de conformidade que contribuem para a manutenção e reprodução serena das relações de privilégio, hierarquia e subordinação existentes, ao invés de avaliar de forma neutra apenas a competência e o desempenho técnicos. Para além do mais, na nossa sociedade as hierarquias de privilégio estão claramente estruturadas pela raça, género e outras diferenças de grupo, de maneira que os avaliadores são por regra homens brancos heterossexuais com corpos capacitados, e as pessoas que eles avaliam pertencem a outros grupos.

Os membros dos grupos subordinados são afectados pelo menos por duas fontes de desvantagens relacionadas com o grupo, ainda que os avaliadores acreditem ser imparciais. Como defendi no capítulo 1, o ideal de imparcialidade propícia a universalização do particular. Os critérios de avaliação acarretam necessariamente implicações normativas e culturais e, portanto, não são frequentemente neutros relativamente ao grupo. Estes critérios acarretam com frequência pressupostos sobre os estilos de vida, estilos de conduta e valores que reflectem a experiência dos grupos privilegiados que os concebem e implementam. Dado que a ideologia da imparcialidade leva quem avalia a negar a particularidade dos seus padrões, os grupos com experiências, valores e formas de vida diferentes não satisfazem os critérios de avaliação. Por exemplo, no capítulo 6 analisei os argumentos feministas no sentido de que muitas normas supostamente neutras e não questionadas do trabalho nas empresas assumem implicitamente a socialização masculina ou um estilo de vida masculino. Para dar outro exemplo, uma empregada ou empregado que não olhe nos olhos o empregador homem e branco pode ser visto como suspeito ou desonesto; mas essa empregada ou empregado pode ter sido educado numa cultura em que afastar o olhar seja um sinal de deferência.

Em segundo lugar, como defendi no capítulo 5, os juízos quotidianos sobre as mulheres, as pessoas de cor, os homossexuais e as lésbicas, as pessoas com deficiência, e as pessoas adultas – e a interacção com todos estes grupos – são frequentemente influenciados por aversões ou desvalorizações inconscientes. Deste modo, as pessoas que avaliam, especialmente aquelas que pertencem a grupos definidos como neutros, transportam frequentemente consigo visões enviesadas e preconceitos inconscientes contra os grupos especialmente referidos. Um grande número de estudos mostrou, por exemplo, que bastantes pessoas brancas qualificam mais negativamente os candidatas ou candidatos negros para um trabalho do que as pessoas brancas com credenciais idênticas (McConohay, 1986). Estudos similares mostraram que o mesmo currículo recebe uma qualificação consideravelmente menor quando tem um nome de mulher do que quando tem um nome de homem (Rhode, 1988, p. 1220).»
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