quarta-feira, 2 de julho de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte IV)

«Três princípios

A concepção agregativa de democracia promete as protecções exigidas por um processo justo de escolha colectiva vinculativo, incluindo as protecções contra a discriminação que acabariam por minar a pretensão de que o processo garante a consideração igual. Afirmei anteriormente que a concepção deliberativa forneceria uma base para uma garantia mais ampla das liberdades básicas. Agora está na altura de demonstrar essa afirmação. A ideia principal é a de que a concepção deliberativa exige mais do que atribuir uma consideração igual aos interesses dos outros; exige, também, que encontremos razões politicamente aceitáveis - razões que sejam aceitáveis para os outros, dado o pano de fundo das diferenças de convicções prudentes. Chamarei este requisito de princípio da inclusão deliberativa.

Considere-se, como exemplo, o caso da liberdade religiosa. As concepções religiosas colocam exigências de uma ordem especialmente elevada - talvez obrigações transcendentes - aos seus seguidores; além disso, se vemos essas exigências a partir do ponto de vista do crente, então não as podemos pensar como auto-impostas. Em vez disso, as exigências são estabelecidas pelo conteúdo das convicções que os agentes consideram verdadeiro. Portanto, seguidores razoáveis não podem aceitar como razões suficientes para justificar uma lei ou um sistema de políticas as considerações que impediriam o seu consentimento àquelas exigências. O que dizer então das pessoas que não compartilham dessas concepções? (Descreverei a questão a partir do ponto de vista dos cidadãos que têm convicções morais fundamentais, mas não convicções religiosas. Poderiam ser feitas observações em grande medida paralelas a partir do ponto de vista dos cidadãos com convicções religiosas diferentes.) Eles poderiam considerar irrazoáveis todas as concepções religiosas que imponham essas exigências rigorosas, independentemente dos seus conteúdos e fundamentações. Não vejo qualquer fundamento para essa concepção. Ou poderiam tratar as exigências religiosas como preferências intensas, às quais teria que ser dada consideração igual em conjunto com outras preferências de igual intensidade. Esta resposta redutora revela má vontade para ver o papel especial das convicções religiosas a partir do ponto de vista da pessoa que as tem, uma má vontade para ver em que medida a concepção religiosa, em virtude do seu conteúdo, afirma ou implica que as exigências fornecem razões especialmente convincentes.

Em alternativa, eles podem considerar seriamente que essas exigências impõem aquilo que os seguidores razoavelmente encaram como obrigações fundamentais, aceitar a exigência de encontrar razões que possam superar essas obrigações e reconhecer que tais razões normalmente não podem ser encontradas. O resultado é a liberdade religiosa, compreendida de modo a incluir a liberdade de consciência e de culto. Emerge como o produto do carácter obrigatório das exigências religiosas - que são consideradas, do ponto de vista daqueles que estão sujeitos a elas, como questões de obrigação fundamental-, juntamente com a condição de encontrar razões que aqueles que estão sujeitos a essas exigências possam razoavelmente estar dispostos a reconhecer, e o facto dos cidadãos que não são religiosos possuírem convicções fundamentais que eles consideram impõr razões especialmente convincentes.

Suponhamos, então, que impedimos outros indivíduos de satisfazerem essas exigências por razões que estão inclinados - à luz de uma concepção que controla a sua convicção - a considerar como insuficientes. Isto significa negar-lhes a sua posição de cidadãos iguais - plena pertença ao povo cujas acções colectivas autorizam o exercício do poder. E isto, de acordo com a concepção deliberativa, é a fracasso da democracia. Falhamos na apresentação de uma justificação para o exercício do poder segundo considerações que todos aqueles que estão sujeitos ao poder, e dispostos a cooperar segundo termos razoáveis, possam aceitar. Há vários modos de excluir indivíduos e grupos do povo, mas este é seguramente um deles.

Estes pontos sobre a liberdade religiosa - principalmente sobre o seu exercício livre - nada dizem sobre como lidar com reivindicações de excepções por motivos religiosos das obrigações gerais com uma justificação secular forte (incluindo as obrigações de educar os filhos); ou se as disposições especiais têm de ser formuladas para convicções especificamente religiosas, enquanto distintas de convicções éticas prudenciais com raízes não religiosas[1]. O meu propósito aqui não é resolver ou mesmo enfrentar estas questões: qualquer concepção que reconheça os direitos de exercício livre precisará enfrentar estas questões difíceis. O meu objectivo é apenas mostrar que uma concepção deliberativa de democracia não está impedida - pela sua estrutura - de reconhecer um papel fundamental aos direitos de liberdade religiosa; de facto, deve proporcionar um espaço para esses direitos[2].

Finalmente, enfatizo que o ponto de garantia da liberdade religiosa, que cai sob a exigência da inclusão deliberativa, não é estritamente político: não habilita as pessoas a participarem na política - ou participarem sem temor -, nem é o seu objectivo aperfeiçoar a discussão pública através da inclusão de vozes mais diversas
[3]. Pelo contrário, a ideia é que a privação dessas liberdades significaria negar aos cidadãos a condição de membros iguais do povo soberano, impondo-se de formas que negariam a força de razões que seriam, à luz de suas próprias concepções, convincentes. As razões para a privação são inaceitavelmente exclusivas, porque são incompatíveis com o ideal de orientar o exercício do poder mediante um processo de dar razões consistente com um sistema de cidadãos livres e iguais.»
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[1] Sobre este último ponto, a chave para o argumento da liberdade religiosa é a de que o conteúdo de uma concepção atribui obrigações sérias à pessoa que a sustenta. Mas um conteúdo especificamente religioso não é essencial.
[2] Esta explicação da liberdade religiosa pode parecer apoiar-se na ideia de um direito natural à liberdade religiosa - quer dizer, que as razões são julgadas aceitáveis num processo deliberativo apenas se elas aceitarem este direito. Se a ideia de um direito natural à liberdade religiosa se traduz na afirmação de que há um direito que só pode ser suprimido sob pena de ilegitimidade, então a concepção deliberativa inclui direitos naturais. Mas as concepções dos direitos naturais têm reivindicado mais do que isto: elas oferecem uma explicação da base dos direitos fundamentais da natureza humana, ou lei natural, ou ordem normativa pré-política à qual a sociedade política deve conformar-se. A ideia de legitimidade democrática não depende dessa explicação - ainda que nada afirme de inconsistente com ela. É suficiente que a liberdade religiosa tenha uma explicação vinculada à ideia de legitimidade democrática. Para os propósitos do argumento político, nada mais precisa ser dito, positiva ou negativamente.
[3] Roberto Unger argumenta que um sistema de direitos de imunidade é um dos componentes de uma ordem democrática, pois "a liberdade como participação pressupõe liberdade como imunidade". Rejeitando a visão dos "críticos da teoria democrática tradicional", que sustentam que "as oportunidades de participação [são] mais do que substitutos satisfatórios para as garantias de imunidade”, Unger vê os direitos de imunidade como necessários quando se espera que um cidadão deva ter "a segurança que o encoraje a participar activa e independentemente no processo de tomada de decisão colectiva”. Em False necessity (Cambridge: Cambridge University Press, 1987) p. 525. Concordo com as observações de Unger, mas penso que a concepção de democracia pode abrir um espaço menos instrumental a certas liberdades, mesmo quando essas liberdades não são procedimentais.
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1 comentário:

Porfirio Silva disse...

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"Engenharia das Sociedades Artificiais e Engenharia das Sociedades Humanas", a sexta e última conferência do ciclo "Das Sociedades Humanas às Sociedades Artificiais", é já na próxima segunda-feira, 7 de Julho, pelas 17:30.

O ciclo de conferências, de natureza transdisciplinar, organizado pelo ISR - Instituto de Sistemas e Robótica (pólo do IST) e concebido como iniciativa de apoio aos projectos de Robótica Colectiva em desenvolvimento nesse Laboratório Associado, termina com a contribuição de um dos investigadores directamente empenhados nessa linha de trabalho. O Professor Pedro Lima, coordenador do Laboratório de Sistemas Inteligentes do ISR, fará uma conferência de síntese e balanço das anteriores sessões, bem como de projecção para o futuro de interrogações que continuam abertas na temática deste ciclo.


Mais informações sobre esta conferência, aqui, incluindo uma antevisão do conteúdo .