quarta-feira, 9 de julho de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte V)


«O princípio da inclusão deliberativa estende-se naturalmente da liberdade religiosa até uma ampla garantia de liberdade de expressão[1]. A este respeito, contrasta com uma corrente mais familiar da teoria do discurso livre, que rastreia os fundamentos das garantias estritas de liberdade de expressão até à necessidade de assegurar uma estrutura democrática de escolha colectiva, mas garante uma protecção estrita apenas ao discurso político[2]. Este limite está em tensão com a exigência de inclusão deliberativa.

Confinar a protecção estrita ao discurso político parece natural, logo que se tenha decidido fundar os direitos à liberdade de expressão na importância da exigência de responsabilidade (accountability) e responsividade (responsiveness) do governo ao corpo dos cidadãos. Mas, como sugerem as minhas observações sobre o caso da religião, uma concepção deliberativa da democracia não pode aceitar tal limite. Para que não haja dúvidas, a ideia de discussão destinada a alcançar um acordo razoável é fundamental para a concepção deliberativa. Mas dela não decorre que a protecção da expressão deva ser confinada ao discurso que contribui para tal discussão.

Considere-se a expressão que não faz parte de qualquer processo de discussão ou persuasão - que não é "prevista ou recebida como uma contribuição para a deliberação pública sobre alguma questão"[3] - mas que, ainda assim, reflecte o que um cidadão considera ser, por razões inteiramente compreensíveis, razões convincentes para a expressão[4]. Isto pode ser assim nos casos de apresentação de testemunhos sem qualquer expectativa ou intenção de persuadir outros, ou de prestar aconselhamento profissional, sem qualquer expectativa ou intenção de formar processos mais amplos de tomada de decisão coletiva. A concepção deliberativa estende a protecção estrita a esta expressão como um modo de reconhecer o peso dessas razões. Dado o pano de fundo do pluralismo razoável, a incapacidade de o fazer - isto é, dar o peso devido a um interesse expressivo que não serve como input à discussão política - constituiria uma negação da condição de igualdade, e decisões que são incapazes de assegurar essas protecções estritas não são adequadamente colectivas.

A tradição que rastreia as protecções de liberdade de expressão aos ideais democráticos e depois restringe a protecção estrita às contribuições para o debate no fórum público consolida a estratégia geral de argumentar a favor da liberdade de expressão enraizada na ideia de democracia num elemento desta estratégia: a necessidade de proteger os inputs para o processo de discussão. Mas acontece com a liberdade religiosa o mesmo que com a liberdadede expressão: a concepção deliberativa também vincula as protecções aos resultados aceitáveis de um processo deliberativo, isto é, aos resultados que podem ser justificados dada a exigência de encontrar razões aceitáveis para os outros em condições de pluralismo razoável.

Sugeri anteriormente uma conexão entre a concepção deliberativa e o valor da comunidade. Essa sugestão pode agora parecer forçada à luz das conexões entre a exigência de razões aceitáveis e a protecção de liberdades não políticas, já que essas liberdades são comummente representadas como - para o bem ou para o mal - dissolventes da comunidade.

Mas a concepção deliberativa sugere uma necessidade de cautela quanto a essa representação. Dadas as condições do pluralismo razoável, a protecção das liberdades dos modernos não é um dissolvente da comunidade. O pluralismo razoável pode em si mesmo ser um dissolvente: pelo menos se definirmos a comunidade em termos de uma concepção moral ou religiosa abrangente compartilhada. Mas logo que assumamos o pluralismo razoável, a protecção das liberdades dos modernos acaba por ser uma condição necessária, embora não insuficiente para a única forma plausível de comunidade política. Como indica a noção "princípio de inclusão", essas liberdades expressam a condição de igualdade dos cidadãos enquanto membros de um corpo colectivo cuja autorização é exigida para o exercício legítimo do poder público.

Voltando agora para o bem comum: as concepções agregativas da democracia são convencionalmente cépticas relativamente às concepções do bem comum. Por exemplo, Robert Dahl sugeriu que nas sociedades pluralistas as concepções do bem comum são ou demasiado indeterminadas para fornecer uma orientação, ou determinadas mas inaceitáveis porque nos conduzem a "resultados espantosos" em condições que são "de qualquer forma imporváveis"[5], ou determinadas e aceitáveis porque são puramente procedimentais - porque definem o bem comum como um processo democrático[6]. Na concepção deliberativa, esta perspectiva céptica é injustificada, embora seja uma outra reflexão sobre a ausência de constrangimentos para além da exigência de agregação justa.

Uma explicação deliberativa do princípio do bem comum começa pela observação de que os cidadãos têm boas razões para rejeitar um sistema de políticas públicas que é incapaz de promover os seus interesses (digo um "sistema de políticas" porque não quero excluir a possibilidade de leis, regulações ou políticas públicas particulares que não estão atentas aos interesses de alguns cidadãos poderem ser justificadas enquanto parte de um pacote global de programas de leis e políticas existente.[7]) Esta restrição mínima - de promover os interesses de cada um – decorre da concepção genérica de um processo deliberativo que é suficiente para estabelecer a exigência de eficiência de Pareto como um elemento de uma concepção de democracia.

Mas como enfatizei, a deliberação que desempenha um papel na concepção de democracia deliberativa não é simplesmente uma questão de fornecer razões, genericamente compreendidas. A concepção de fundo dos cidadãos como iguais coloca limites sobre as razões permissíveis que podem surgir no processo deliberativo. Suponhamos que alguém aceita o processo democrático de escolha colectiva vinculadora, admitindo que os adultos, mais ou menos sem excepção, tenham acesso a ele. Alguém pode então rejeitar, como uma razão no interior desse processo, que alguns são menos importantes do que os outros ou que os interesses de um grupo valem menos do que os interesses de outros grupos. Esse constrangimento sobre as razões limitará, por sua vez, os resultados do processo, acrescentando-se às condições estabelecidas pela ideia genérica de deliberação. Em particular, fornece um argumento a favor de um acordo público sobre a distribuição de recursos que rompe o destino dos cidadãos a partir das diferenças de posição social, das heranças naturais e da boa fortuna que distingue os cidadãos.

O princípio da diferença de John Rawls fornece um exemplo deste tipo de acordo[8]. Tratar a igualdade como ponto de partida, exige que as desigualdades estabelecidas ou sancionadas pela acção do estado deva funcionar para a vantagem máxima dos menos favorecidos. Esse ponto de partida é uma expressão natural dos constrangimentos sobre as razões que emergem do pano de fundo da condição de igualdade dos cidadãos: não será considerada como uma razão para um sistema de políticas públicas que beneficie os membros de um grupo particular diferenciado pela classe social, ou talento natural, ou por qualquer outra característica que os distinga entre cidadãos iguais. Não quero aqui sugerir que o princípio da diferença de Rawls seja a única concepção aceitável do bem comum. Mas existem argumentos particularmente fortes a favor dele, tanto porque aceita o pressuposto da igualdade que surge dos constrangimentos especiais sobre as razões no interior da concepção democrática deliberativa, como porque insiste, grosso modo, que ninguém fique em pior situação do que o que é necessário - o que é em si mesmo a expressão natural da concepção deliberativa.»
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[1] Essa discussão deriva de meu "Freedom of expression", Philosophy and Public Affairs, 22, Verão 1993,pp.207-263.
[2] Veja-se Alexander Meiklejohn, Free Speech and its Relation to Self-Government (New York: Harper & Row, 1948); e Cass R. Sunstein, Democracy and the Problem of Free Speech (New York: Free Press, 1993). Veja-se também Robert Bork, "Neutral PrincipIes and some First Amendment Problems", Indiana Law Journal, 47,nº 1 (Outono 1971): pp.1-35; Ely, Democracy and Distrust; e Owen Fiss, "Why the State?", Harvard Law Review 100 (1987): pp. 781- 794.
[3] Esta é a explicação do discurso político apresentada por Sunstein em Democracy and the Problem of Free Speech, p. 130.
[4] Não quero sugerir que a protecção estrita deva ser confinada à expressão animada por essas razões convincentes. A defesa democrática convencional dos direitos de expressão também fornece uma base para a protecção estrita. O meu objectivo é complementar essa análise.
[5] Democracy and its Critics, p. 283.
[6] Ibid., pp. 306-8.
[7] Os vícios dos impostos sobre vendas, por exemplo, dependem da natureza e do nível de isenções, a presença (ou não) de créditos fiscais, e a natureza das políticas de rendas.
[8] Veja-se John Rawls, Theory of Justice (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971), p. 513. Para uma discussão da conexão entre o princípio da diferença e um ideal de democracia, veja-se Joshua Cohen, "Democratic equality", Ethics, 99 (Julho 1989): pp. 736- 743. Uma outra visão que pode ser usada para ilustrar os pontos do texto é a igualdade de recursos de Dworkin. Veja-se Ronald Dworkin, "What is equality? Part 2: Equality of Resources”, Philosophy and Public Affairs 10 (1981): pp.183-345.
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