segunda-feira, 14 de julho de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte VI)

«Pretendo, finalmente, ligar a concepção deliberativa aos direitos de participação - as liberdades dos antigos. Mais concretamente, quero mostrar em que medida a concepção deliberativa acomoda um "princípio de participação"[1]. De acordo com este princípio, a escolha colectiva democrática – que institucionaliza o vínculo entre justificação deliberativa e o exercício do poder público - deve assegurar direitos de participação iguais, incluindo direitos de voto, de associação e de expressão política, com uma presunção forte contra as restrições sobre o conteúdo ou o ponto de vista da expressão; direito a ocupar cargos públicos; uma presunção forte a favor da ponderação igualitária dos votos; e uma exigência mais geral de igualdade de oportunidades a favor da influência efectiva[2]. Essa última exigência condena a desigualdade de oportunidades na ocupação de cargos públicos e na influência política que resultam do desígnio dos arranjos do processo de tomada de decisão colectiva[3].

Note-se, primeiro, que o simples facto das decisões deverem ser feitas em geral de modo deliberativo não contribui significativamente para o estabelecimento de um argumento a favor do princípio de participação[4]. Talvez um procedimento deliberativo ideal seja melhor institucionalizado ao assegurar-se um debate político bem conduzido entre as elites, capacitando desse modo as pessoas para fazerem escolhas informadas entre si e as concepções que elas representam, sem qualquer arranjo especial para uma igualdade política mais substantiva, entendida como exigindo uma ponderação igualitária de votos e oportunidades iguais para uma influência efectiva[5]. Então, como se liga a concepção deliberativa às preocupações sobre a participação e a igualdade política?

São importantes três considerações. Primeiro, dados os princípios da inclusão deliberativa e do bem comum, a concepção deliberativa pode valer-se ela mesma das razões instrumentais convencionais a favor dos direitos políticos iguais. Esses direitos fornecem os meios para proteger outros direitos básicos e para potenciar interesses, de modo que seja plausível promover o bem comum. Para além disso, na ausência de garantias de influência efectiva, essa promoção parece ser um resultado improvável. E seria especialmente improvável se às desigualdades na efetividade correspondessem desigualdades económicas ou sociais subjacentes na sociedade[6].

Ao argumentar de forma instrumental, pode parecer que estou a afastar-me em direcção de uma concepção de política como negociação, com garantias de poder igual funcionando para assegurar um equilíbrio político com resultados justos. Só que essa é uma compreensão errada da racionalidade instrumental e do seu mecanismo. Ao invés, a ideia é que ao assegurar que todos os cidadãos tenham direitos políticos efectivos serve para lembrar que os cidadãos têm de ser tratados como iguais na deliberação pública, e que, ao reduzir as desigualdades de poder, reduzem-se os incentivos para mudar de uma política deliberativa para uma política como negociação.

Uma segunda consideração é a de que muitas das justificações convencionais, históricas para as exclusões de ou para as desigualdades de direitos políticos - justificações fundamentadas na raça e no género, por exemplo - não garantem razões aceitáveis na deliberação pública. Esta consideração não excluirá todas as razões para a desigualdade - por exemplo, se os votos são ponderados de forma inigualitária porque o sistema político apoia-se, como no caso do Senado dos Estados Unidos, sobre um esquema de representação territorial em que os distritos eleitorais correspondem a subdivisões políticas. Mas estabelece uma presunção adicional a favor do princípio de participação.

Finalmente, considerações análogas às que encontramos no caso da liberdade de religião ou de expressão fortalecem o argumento a favor de direitos políticos iguais, com garantias de oportunidades iguais para a influência efectiva. Um aspecto característico das convicções morais e religiosas é que elas nos oferecem razões fortes para procurar transformar o nosso ambiente sociopolítico. As concepções abrangentes que subjazem a esses direitos variam desde a concepção aristotélica sobre o papel central do envolvimento cívico na vida boa, até às teses rousseaunianas sobre a relação entre a autonomia pessoal e a participação, a concepções, fundadas em convicções religiosas, sobre o carácter mandatório da responsabilidade pessoal para assegurar a justiça social e o pecado pessoal correspondente de falhar o cumprimento dessa responsabilidade. É um lugar-comum, no entanto, afirmar que os cidadãos têm razões substantivas, por vezes imperativas, para se dedicarem às questões públicas. Pelo facto de possuírem, a incapacidade de reconhecer o peso destas razões para o agente e de reconhecer das exigências de oportunidades de influência efectiva que delas decorrem reflecte uma incapacidade para apoiar a ideia de fundo dos cidadãos como iguais.»
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[1] Veja-se Rawls, Theory of Justice, pp. 36-7.
[2] Sobre a exigência de oportunidade a favor da influência efectiva, veja-se Rawls, Political Liberalism, pp. 327-30. Para uma discussão sobre a dimensão constitucional do problema, veja-se Davis vs. Bandemer 478 U.S. 109, 132, (1986). O Tribunal reconhece aqui que a protecção igual se torna problemática quando o "sistema eleitoral está organizado de modo que degradaria consistentemente a influência de um eleitor ou grupo de eleitores no processo político como um todo”. Low-Beer distingue entre uma exigência de ponderação igualitária dos votos, em jogo nas questões de representação proporcional, e os votos significativamente igualitários, em jogo nos casos de divisão do território em distritos eleitorais que diferem grandemente em dimensão geográfica concedendo desta forma uma vantagem injusta nas eleições a um candidato ou partido particulares (gerrymandering). Acredito que o valor ameaçado pela gerrymandering é melhor entendido como influência politica mais genérica, e não apenas como força eleitoral. Veja-se John Low-Beer, "The Constitutional Imperative of Proportional Representation", Yale Law Journal 94, 1984,pp.163-88.
[3] Entre as preocupações que se incluem nesta exigência, estão a diluição dos votos devida a gerrymandering política e racial, e a influência desigual devida a arranjos no financiamento de campanhas, a regras restritivas no acesso a cédulas eleitorais e aos regulamentos dos partidos políticos.
[4] Historicamente, a concepção deliberativa da política estava associada a formas altamente exclusivistas de parlamentarismo; mais até, segundo uma influente linha de pensamento, a democracia de massas destruiu a possibilidade de um processo de tomada de decisão política deliberativa. Segundo Carl Schmitt, "A crença no parlamentarismo, no governo através da discussão, pertence ao ambiente intelectual do liberalismo. Não pertence à democracia". Para além disso, "o desenvolvimento da moderna democracia de massas transformou a discussão pública argumentativa numa formalidade vazia". Veja-se The Crisis of Parlamentary Democracy, trad. Ellen Kennedy (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985), 6, 8.
[5] Desse modo, a explicação de Beitz da igualdade política liga os interesses do reconhecimento e tratamento igualitário às garantias de ponderação igualitária de votos e acesso justo. Aquilo que ele chama de "interesse deliberativo”, em contraste, apenas exige um debate político bem conduzido. Veja-se Charles R. Beitz, Political Equality (Princeton: Princeton University Press, 1989).
[6] Veja-se a discussão do interesse no tratamento equitativo em Beitz, Political Equality, p. 110-14. Este interesse desempenha um papel importante nos casos de representação proporcional decididos pela Supremo Tribunal no início dos anos sessenta. "Nenhum direito é mais precioso num país livre do que o de ter voz na eleição daqueles que fazem as leis segundo as quais, como bons cidadãos, temos de viver. Outros direitos, mesmo os mais básicos, são ilusórios se o direito de votar não é respeitado." Gray vs. Sanders, citado por Reynolds vs. Sims 377 U.S. 533 até 558 (1964). Ou mais uma vez: "Especialmente desde que o direito a exercer o sufrágio de um modo livre e intacto preserva outros direitos civis e políticos básicos, qualquer alegada violação do direito de votar dos cidadãos deve ser cuidadosa e meticulosamente verificada". Reynolds vs. Sims, em 562.
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