quarta-feira, 16 de julho de 2008

Michael Walzer, "Acção política: o problema das mãos sujas" (Parte I)

«Numa edição anterior de Philosophy and Public Affairs apareceu um simpósio sobre regras da guerra que era na realidade (ou pelo menos mais decisivamente) um simpósio sobre outro tópico[1]. O verdadeiro tópico era saber se um homem pode ou não alguma vez enfrentar, ou se alguma vez enfrentou, um dilema moral, uma situação em que deve escolher entre dois cursos de acção em que seria errado para ele realizar qualquer um deles. Thomas Nagel sugeriu, preocupadíssimo, que isto poderia acontecer e que aconteceu sempre que alguém se viu forçado a escolher entre defender um princípio moral importante e evitar um desastre iminente[2]. R. B. Brandt argumentou que é impossível que isso aconteça, porque há orientações que podemos seguir e cálculos que podemos efectuar que conduzirão necessariamente à conclusão de que um ou o outro curso de acção será o correcto nas circunstâncias (ou que é irrelevante escolher qualquer um deles). R. M. Hare explicou como pode alguém erradamente supor estar a enfrentar um dilema moral: por vezes, sugeriu, os preceitos e princípios de um homem comum, os resultados da sua educação moral, acabam por conflituar com injunções desenvolvidas num nível mais elevado do discurso moral. Mas este conflito é, ou deve ser, resolvido no plano mais elevado; não há verdadeiramente dilema.

Não estou certo que a explicação de Hare seja inteiramente reconfortante, mas a questão é relevante mesmo que essa explicação não seja possível, e talvez seja assim se não for este o caso. O argumento conecta-se não só à coerência e harmonia do universo moral, mas também à facilidade ou dificuldade – ou impossibilidade - relativa de viver uma vida moral. Não é, assim, uma mera questão filosófica. Se um tal dilema pode surgir, independentemente de ser frequente ou bastante raro, qualquer pessoa pode em qualquer momento enfrentá-lo. Com efeito, muitos homens já enfrentaram dilemas morais, ou pelo menos pensam que os enfrentaram, especialmente aqueles que se envolveram na acção política ou na guerra. O dilema, tal como Nagel o descreve, é frequentemente discutido na literatura sobre a acção política – em novelas e peças que lidam com a política e também nos trabalhos dos teóricos.

Nos tempos modernos, o dilema aparece mais frequentemente como o problema das “mãos sujas”, e é classicamente afirmado pelo líder comunista Hoerderer na peça de Sarte com o mesmo nome: “tenho as mãos sujas até aos cotovelos. Mergulhei-as em porcaria e sangue. Pensas que podes governar inocentemente?”[3] A minha resposta é que não é, não penso que seja possível governar inocentemente; a maior parte de nós não acredita que quem governa o faça de forma inocente – como defenderei mais em baixo – nem sequer o melhor dos governantes. Mas isto não significa que não seja possível fazer a coisa certa quando se governa. Significa que um acto de governo particular (num partido político ou num estado) pode ser exactamente a coisa certa a fazer de um ponto de vista utilitarista e, no entanto, fazer com que o seu actor se sinta culpado de um acto moralmente errado. O homem inocente, no fim de contas, já não é inocente. Se por outro lado permanece inocente, escolhe, desse modo, o lado “absolutista” do dilema de Nagel, acabando não só por fazer a coisa certa (de um ponto de vista utilitarista), mas podendo também não estar à altura dos deveres do seu cargo (que lhe impõe uma responsabilidade considerável pelas consequências e resultados). Certamente, os líderes políticos aceitam mais frequentemente o cálculo utilitário; procuram estar à altura. Pode-se apresentar um número de comentários sarcásticos sobre estes factos, e o mais óbvio é o de que através dos cálculos que habitualmente fazem demonstram as grandes virtudes da posição “absolutista”. Ainda assim, não queremos ser governados por homens que adoptam consistentemente essa posição.

A noção de mãos sujas deriva do esforço para recusar o “absolutismo” sem negar a realidade do dilema moral. Embora isto para os filósofos utilitaristas pareça ser equivalente a amontoar confusão, proponho que seja levado bastante a sério. A literatura que examinarei é o trabalho de homens sérios e frequentemente sábios, e reflecte, embora também tenha ajudado a moldar, a concepção popular da política. Também é importante prestar atenção a isso. Farei isso sem assumir, como Hare sugere que se faça, que o discurso moral e político corrente constitui um nível distinto de argumentação, em que o conteúdo é largamente uma questão de subterfúgio pedagógico[4]. Se as concepções populares são resistentes (como de facto são) ao utilitarismo, poderá haver algo a aprender com isso e não só algo a explicar.»
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[1] Philosophy and Public Affairs 1:2 (Inverno 1971/72): Thomas Nagel, “War and Massacre”, 123-44; R. B. Brandt, “Utilitarianism and the Rules of War”, 145-65; e R. M. Hare, “Rules os War and Moral Reasoning”, 166-81.
[2] A propósito da descrição de Nagel de um possível “beco sem saída moral”, veja-se “War and Massacre", 142-4. Bernard Williams apresentou uma sugestão similar, embora sem verdadeiramente se aperceber disso: “Muitas pessoas podem reconhecer o pensamento de que um certo curso de acção seja, de facto, a melhor coisa a fazer dada a totalidade das circunstâncias, mas que implica fazer algo de errado” (Morality: an Introduction to Ethics [New York: Cambridge University Press, 1972], 93).
[3] Jean-Paul Sartre, Dirty hands em No Exit and Three Other Plays, trad. Lionel Abel (New York, Vintage Books, 1955), 224.
[4] Hare, “Rules of War and Moral Reasoning”, 173-8, especialmente 174: “Os princípios simples dos deontologistas… têm o seu lugar no plano da formação do carácter (educação moral e auto-educação)”.
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