sexta-feira, 4 de julho de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte VIII)

«Consenso fraco e razoabilidade

Examinemos cada uma destas opções à vez. Primeiro, então, suponhamos que embora a deliberação pública não alcance o consenso sobre questões de detalhes, gera um consenso sobre questões mais gerais. Há aqui dois tipos de consenso fraco. Um é o de que de algum modo todos chegam a um acordo sobre princípios e valores básicos que devem fundamentar a associação política, mas discordam sobre a prioridade correcta das relações entre esses valores. Assim, por exemplo, dois grupos podem chegar a um acordo, como resultado da deliberação pública, de que a liberdade interpretada de um certo modo e a igualdade interpretada de algum outro modo são os valores centrais que devem ser incorporados às instituições políticas. Suponhamos que o acordo seja aqui sobre concepções muito específicas desses valores. Chamemos a isso um consenso sobre a lista de valores. Aquilo sobre o qual os grupos acabam por divergir refere-se à importância relativa desses valores. Por exemplo, suponhamos que um grupo coloca a liberdade antes da igualdade e que um outro inverta a ordem. A consequência para a política neste caso, digamos, é que um grupo favorece uma economia do laissez-faire com poucos constrangimentos sobre a competição e poucas garantias de um bem-estar mínimo; o outro favorece uma sociedade social-democrática que tem mercados altamente regulados em certas áreas e controlo do Estado noutras, e um sistema de impostos redistributivos associado a um forte aparato do Estado do bem-estar que assegura uma vida decente para todos independentemetne de estarem ou não empregados. A ideia agora é a de que a maioria foi persuadida do valor de uma dos arranjos da igualdade e liberdade e, consequentemente, considera um desses diferentes tipos de instituições como sendo justificado. Mas a minoria, que não está persuadida pela concepção da maioria, pode ver que a combinação deriva de valores similares aos seus, embora numa ordem inversa de prioridade e com intensidade diferente atribuída a cada um deles. A minoria, embora discorde sobre questões de políticas e mesmo, em alguma medida, sobre questões de princípio, considera que as políticas lhes foram politicamente justificadas com base na lista de valores que ela aceita.

Consideremos um segundo tipo de consenso fraco. Agora suponhamos que todos cheguem a acordo em resultado de deliberação pública de que a igualdade e a liberdade são os valores mais importantes de uma sociedade política. Mas eles não concordam quanto às interpretações desses valores. Chamemos a isso consenso abstracto. De facto, suponhamos que se formam dois lados e que estes dois campos favorecem, num caso, o Estado de laissez-faire que descrevi acima, e no outro, a social-democracia que descrevi acima. Mais uma vez, dado que o grupo perdedor vê que as políticas do grupo vencedor se baseiam, em abstracto, nos mesmos valores, consideram o resultado como politicamente justificado.

Estas duas abordagens apresentam diversas dificuldades sérias enquanto defesas da concepção justificatória. Primeiro, é falso esperar que a deliberação pública possa genericamente realizar ou sustentar um ou outro destes tipos de consensos. Podemos ver uma matriz ampla de valores nas sociedades democráticas contemporâneas e parece não haver nelas qualquer consenso sobre que lista de valores será a melhor. Junto aos valores da igualdade e da liberdade e, algumas vezes, no seu lugar, vemos os valores da comunidade, do mérito, da vantagem mútua, da virtude, da eficiência, da homogeneidade religiosa, do nacionalismo e de vários tipos de multiculturalismo publicitados como valores políticos. Não se pode dizer que estes valores tenham surgido simplesmente pelo facto do processo de deliberação pública não ser suficientemente aberto ou racional. Pelo contrário, são o resultado de um sistema de deliberação aberto e racional. Eles emergem não apenas no discurso político habitual, mas também nas discussões académicas, que estão o mais livre possível de pressões da intimidação, ignorância, irracionalidade, etc. O sistema de deliberação pública nas sociedades democráticas contemporâneas pode tornar-se inequivocamente mais igualitário, racional e aberto, mas é difícil acreditar que este sistema possa produz menos diversidade de perspectivas. Dizê-lo de outra forma pressuporia a verdade de uma hipótese profundamente especulativa, para a qual não podemos razoavelmente expressar a nossa fidelidade. A ideia de que um consenso fraco surgirá ou que já existe está bem distante da nossa experiência comum das sociedades políticas democráticas liberais.

Uma segunda preocupação com esta abordagem é a de que não está claro quais serão os limites da justificação política. Presumivelmente alguns tipos de acordos abstractos são insuficientes para a justificação política. Por exemplo, alguém pode concordar que a justiça deve ser a preocupação mais importante das instituições jurídicas da sociedade, mas semelhante consenso abstracto é compatível com uma divergência de perspectivas extremamente ampla. Em muitos desses casos é claro que um consenso sobre uma lista ou um princípio abstracto não pode fundamentar qualquer justificação política. É difícil ver como pode a ideia de justificação política ser viável na ausência de um critério sério que demarque os tipos de acordos que podem servir como base da justificação política. Ou pelo menos precisamos de um critério que distinga aqueles casos de desacordos sobre a interpretação ou a ordenação que anulam a justificação política daqueles que não o fazem.

Um critério possível que faz sentido afirma que, embora os membros de uma minoria discordem da maioria sobre uma interpretação particular ou uma ordenação de valores sobre a qual há consenso, podem ver como a maioria conseguiu alcançar a sua interpretação de uma forma razoável. Eles podem ver como alguém pode razoavelmente aceitar a concepção que a maioria aceita. E assim, por sua vez, podem ver como podem razoavelmente aceitar a posição da maioria. Isto pode ser suficiente para a justificação política da maioria. Isso será, pelo menos em parte, uma tese psicológica sobre a minoria. Não exige que a minoria avalie a posição da maioria por meio de uma concepção correcta de razoabilidade (incluindo padrões de evidência e inferência). Ela avalia a concepção da maioria usando os seus próprios padrões de razoabilidade. Contudo, o problema deste critério é o facto de ser bastante pouco confiável como meio de avaliar a justificação política. É provável que o que as pessoas vêem nesta relação varie bastante de uma pessoa para outra. Os padrões que aplicam ao fazer estas avaliações de razoabilidade podem provavelmente variar. Consequentemente, é altamente provável que muitos dos membros da minoria venham a pensar que a maioria não alcançou a sua conclusão de uma forma razoável. Por isso, não vão pensar que podem razoavelmente aceitar o que a maioria tenha feito e não verão que a maioria lhes tenha justificado politicamente a sua interpretação ou ordenação dos valores políticos comuns.

Há aqui um outro critério a insinuar-se. O defensor da concepção justificatória pode exigir que a minoria avalie a concepção da maioria apelando a padrões correctos de razoabilidade. Agora a possibilidade será apelar às teorias tradicionais de evidência e de inferência oferecidas pelos epistemólogos[1]. Um membro da minoria pode ver que dadas as premissas que a maioria aceita e dada a pretensão geral de que estão de acordo sobre elas, a maioria está justificada (de acordo com a epistemologia correcta) ao aceitar o que eles aceitam. É claro que as premissas teriam também de ser pelo menos defensáveis. Podemos estender este raciocínio dizendo que mesmo que a minoria não veja isso, deve vê-lo, para que possa desta forma aceitar razoavelmente a escolha da maioria mesmo no caso de discordar dela.

O problema deve ser agora óbvio. Se aceitarmos a tese de que as pessoas discordam sobre questões relacionadas com a interpretação do consenso fraco, então é bastante provável que venhamos a encontrar algum desacordo sobre se as premissas em discussão a partir das quais as interpretações alternativas são defendidas, serão de facto defensáveis, ou sobre se os argumentos a partir do acordo quanto a princípios e quanto a premissas em discussão fornecem de facto um apoio para a interpretação alternativa ou para a ordenação de princípios aceite pela maioria. Nesse caso será ou por a epistemologia estar sujeita a controvérsias ou por haver um desacordo sobre se o critério epistemológico de justificação encontrado fundamenta as premissas em discussão ou a concepção alternativa. O que constitui, por outras palavras, a aceitação razoável de uma posição diferente será provavelmente ela própria objecto de controvérsia. Portanto, alguns verão que outros chegam às suas concepções alternativas por meios razoáveis e alguns verão o contrário.

Se o defensor da concepção justificatória diz que a minoria não avaliou as concepções através dos padrões epistemológicos correctos (isto é, padrões de evidência e de inferência), então devemos perguntar por que a avaliação da minoria deveria ser feita por referência a padrões que ela não aceita. Sob a suposição de que se pode defender uma pluralidade de epistemologias, embora de forma inconclusiva, é difícil ver por que a minoria deve aceitar os resultados de uma epistemologia que não aceita. A ideia por trás da concepção justificatória é a de que não devem ser impostos às pessoas ideais políticos quando elas não podem razoavelmente dar a sua aquiescência a esses ideais, já que essa imposição seria opressiva. Como consequência, é difícil ver como poderia permitir que fossem padrões epistemológicos aos cidadãos quando esses padrões estão abertos à disputa[2]. Para além disso, exigir que os cidadãos adiram a certos padrões de evidência e inferência quando os rejeitam e quando os seus próprios padrões são defensáveis, parece particularmente opressivo à luz da concepção justificatória. É assim porque essa exigência, ao negar-Ihes o uso dos seus próprios padrões de avaliação igualmente defensáveis, retiraria de facto a avaliação dos ideais políticos das suas mãos. Se os padrões de avaliação das concepções de valores políticos não devem violar o ideal básico inspirador implícito na concepção justificatória, devem ser padrões defendidos por todos[3]. Infelizmente, contudo, não deve ser possível encontrar um acordo sobre esses padrões. Por isso, parece que a abordagem do consenso fraco não pode fornecer uma explicação da justificação política, mesmo quando complementada por uma concepção de razoabilidade.

Outra dificuldade com o uso de padrões correctos de razoabilidade, enquanto forma de avaliar se a posição da maioria foi justificada politicamente, é a de que a maioria pode falhar nesses padrões e a minoria pode ter êxito na satisfação desses padrões ao elaborar as suas interpretações. Nesse caso, a minoria teria justificado politicamente à maioria a sua posição (nesta explicação), mas a maioria não teria justificado politicamente à minoria a sua concepção. Um outro resultado possível desta abordagem é o de que nenhum grupo consegue justificar a sua concepção aos outros com base em padrões correctos de razoabilidade. E isto pode acontecer mesmo quando todos acreditam que a justificação política tenha ocorrido. Parece que estamos a ficar cada vez mais distantes de uma sociedade em que "os termos apropriados de associação fornecem uma estrutura para ou são o resultado da deliberação dos cidadãos".»
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[1] Veja-se Gaus, Justificatory Liberalism, p. 4, sobre uma tentativa de fundamentar uma concepção de justificação política numa teoria epistemológica, embora não a use neste contexto.
[2] Para algumas considerações paralelas, veja-se Jean Hampton, "The moral commitments of liberalism'”, in The Idea of Democracy, eds. David Coop, Jean Hampton e John Roemer (Cambridge: Cambridge University Press, 1993).
[3] Como Rawls argumenta em Political Liberalism, p. 224.
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