segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Iris Marion Young, “A Acção Afirmativa e o Mito do Mérito” (Parte VI)

«A educação e os testes como substitutos do rendimento

Defendi que o requisito das regras normativa e culturalmente neutras para avaliar o desempenho laboral individual, que exige o princípio do mérito, não é em geral alcançável. Contudo, a manutenção de uma divisão hierárquica do trabalho com escassas posições privilegiadas no topo apenas está justificada se essas posições forem ocupadas em função de critérios de competência técnica normativa e culturalmente neutros. Trata-se, portanto, de encontrar substitutos do rendimento, regras para a competência e resultados individuais que possam substituir as regras sobre o rendimento, e que sejam independentes e neutras relativamente aos valores e à cultura.
As credenciais educativas e os resultados dos testes padronizados funcionam na nossa sociedade como os principais substitutos da avaliação directa e como previsão do desempenho laboral. Todavia, não obstante as crenças contrárias, os resultados educativos e os resultados dos testes não são mais neutros que as avaliações mais directas do desempenho.

Numa sociedade liberal democrática, a educação é entendida como um meio para garantir a igualdade de oportunidades para todos os grupos. Mas não há evidência de que a educação o faça. O sistema educativo reproduz invariavelmente as hierarquias de classe, raça e género apesar das educadoras e educadores se terem lamentado deste facto durante décadas (Gintis e Bowles, 1986, cap. 4). As educadoras e os educadores acreditam erradamente ter alcançado a igualdade de oportunidades na educação quando ninguém é impedido de realizar determinados estudos por causa da sua raça ou do seu género, e quando, em princípio, todos os estudantes seguem o mesmo plano de estudos e são avaliados segundo as mesmas regras. As escolas não prestam atenção suficiente às diferentes necessidades de aprendizagem, e delegam a responsabilidade nos pais e nos próprios estudantes quando estes não alcançam os objectivos (Bastian, et al., pp. 26-31). As escolas continuam a diferenciar-se em função da raça em muitas regiões dos Estados Unidos. Mesmo nos casos em que não reforçam de maneira activa os estereótipos de género e de raça, as escolas geralmente pouco fazem para confrontar as imagens culturais sobre quais são as actividades culturais adequadas para as meninas e os meninos, ou para tornar visíveis os sucessos das mulheres e das pessoas de cor. Ao contrário, persistem graves diferenciações culturais e de género nos estudos e nos resultados alcançados no ensino secundário e universitário em matemática e ciências – que são as disciplinas que mais precisam para o exercício de carreiras privilegiadas e lucrativas numa sociedade de alta tecnologia. Eleanor Orr (1987) defende que a existência de um dialecto coerente e separado de inglês negro faz com que algumas meninas e meninos negros sistematicamente traduzam mal o que é ensinado nas aulas de ciências e matemática, sendo esta a causa, pelo menos em parte, do baixo rendimento e menor interesse das meninas e meninos negros por estas disciplinas. Formularam-se argumentos similares a propósito do preconceito de género na cultura das matemáticas e das ciências.

O dinheiro continua a ser uma importante fonte de discriminação. As meninas e os meninos das classes medias e altas têm melhores escolas que as meninas e meninos pobres e da classe operária. Assim, as primeiras estão melhor preparadas para competir na admissão à universidade. Se, por acaso, alguém pobre e da classe trabalhadora supera as provas de admissão à universidade, é frequente que não consiga depois pagar os estudos universitários ou a pós-graduação que lhe permitiria alcançar posições privilegiadas.

De acordo com Randall Collins (1979, pp. 19-21), estudos realizados mostram uma escassa correlação entre o rendimento educativo e o desempenho profissional ou o êxito ocupacional. A maior parte do que se ensina nas escolas não se relaciona com as capacidades técnicas, mas com os valores culturais e normas sociais tais como a obediência, a cortesia e o respeito pela autoridade. Com frequência as e os estudantes são qualificados tendo em conta o facto de saber se internalizaram correctamente estes valores e normas antes de se ter em conta o facto de saber se são capazes de realizar certas tarefas.

Ainda assim, o rendimento educativo transformou-se no principal critério de aptidão profissional. Como se pode imaginar, isto conduziu directamente a uma inflação das credenciais educativas. Já que obter um diploma de estudos secundários passou a ser realmente possível para a maioria das pessoas, o título universitário tornou-se uma condição sine qua non para muitos trabalhos. Quando a ajuda governamental começou a tornar possível que as universidades locais e os cursos de quatro anos das universidades estatais passassem a ser acessíveis a todas as pessoas, este tipo de estudos também passou a ser relativamente desvalorizado. Há que vir de “uma escola melhor” para possuir um título de pós-graduação para “abrir o caminho”. A promessa da educação como um bilhete para a parte de cima da divisão do trabalho não se chega a concretizar, porque o sistema hierárquico apenas permite a existência de relativamente poucas posições de privilégio, e o sistema de credenciais funciona como um guardião destas posições. As pessoas realizam cursos de especialização de boa-fé e conseguem credenciais, para depois não conseguirem uma posição de topo, porque muitas outras pessoas fizeram o mesmo. Essas pessoas aceitam trabalhos para os quais possuem excesso de qualificações, elevando desta forma os padrões formais para essas posições, e a espiral continua (Burris, 1983).

Os testes padronizados constituem a forma mais importante de substituição do critério de desempenho, e são usados não apenas para identificar as candidatas melhor qualificadas, mas também para identificar no sistema educativo os resultados e aptidões que farão com que os indivíduos sejam admitidos nos programas educativos privilegiados. Acreditou-se que os testes padronizados forneceriam as regras objectivas, normativa e culturalmente neutras, para avaliar a competência técnica ou cognoscitiva individual. Os testes padronizados parecem ajustar-se aos requisitos de avaliação dos méritos porque são por regra procedimentalmente justos. Não têm em conta a raça, o sexo e a etnia. Tais testes são “objectivos” no sentido em que quando são usados para avaliar indivíduos, podemos estar seguros que todos foram avaliados de acordo com os mesmos critérios, e no sentido em que, para um dado indivíduo, qualquer uma das pessoas avaliadas deverá alcançar a mesma pontuação. Ao quantificar as respostas e ao basear-se em complexas técnicas estatísticas, os testes apresentam-se também como sendo capazes de medir com precisão a capacidade individual, e comparar e classificar os indivíduos, proporcionando um juízo objectivo sobre quais serão as pessoas melhor ou pior qualificadas.»
.

2 comentários:

Anónimo disse...

Um excelente texto. Regresso em força!
Passe pelo Ontologias, tem por lá algumas sessões que lhe podem interessar.
Abraço da RS.

Vítor João Oliveira disse...

Obrigado.
Em força ainda não.
Os professores gastam hoje muito do seu tempo útil em inutilidades e imbecilidades, e depois falta tempo para aquilo que realmente interessa.
Claro que passarei pelo Ontologias.
Abraço.