terça-feira, 23 de setembro de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte VII)

«A democracia realizada

A concepção deliberativa de democracia apreende o papel do "não-democrático" como um termo de crítica aplicado aos resultados bem como aos processos: ela fornece razões comuns para os aspectos expressos nos pontos de vista "pelo povo" e "para o povo" do ideal de democracia. Todavia, esta incorporação de exigências substantivas importantes na concepção de democracia é problemática em si mesma. A questão é que se oferecemos uma interpretação da democracia que trata todas as coisas boas como se fossem ingredientes da própria ideia de democracia - requisitos de igualdade política, considerações do bem comum, e as liberdades dos modernos -, pode parecer, então, que integramos valores procedimentais e substantivos à custa da orientação prática. O que devemos fazer quando vários elementos da democracia deliberativa entram em conflito? Na prática, os fundamentos comuns da democracia deliberativa não fornecem qualquer garantia contra conflitos. Por exemplo, as liberdades estipuladas pela exigência de inclusão deliberativa podem entrar em conflito com as liberdades políticas iguais que caem sob a exigência de participação. Dados os conflitos entre eles, por que será vantajoso ter todos estes elementos integrados no interior do ideal de democracia?

A resposta é que, ao ressaltar os fundamentos comuns, esclarecemos a necessidade de encontrar formas de ajustar os requisitos diferentes, até onde este ajuste for possível. Isto pode ser mais frequente do que estamos inclinados a pensar, embora o "quão frequente" seja uma função da política. Para tornar este ponto menos telegráfico, irei apresentar alguns exemplos. Pretendo concentrar a discussão em dois casos em que os vários requisitos entram em conflito, e ver o que, nesses casos, pode ser dito sobre a sua reconciliação.

O meu primeiro caso é o do financiamento de campanhas políticas. O problema surge de um dilema familiar: de um lado, as restrições sobre os gastos políticos dos candidatos, partidos, cidadãos individuais e organizações parecem oprimir a liberdade de expressão, particularmente, dada a expectativa subjacente de que tais gastos são permitidos; pode-se argumentar que os encargos também resultam dos limites muito restritivos sobre as contribuições para as campanhas políticas. Além disso, as restrições sobre os gastos dos candidatos e partidos, mesmo quando são aceites como uma condição para receber o financiamento público, pode reforçar a vantagem dos reelegíveis, resultando num sistema eleitoral menos competitivo, menos capaz de sujeitar os funcionários públicos eleitos a mecanismos de prestação de contas, e, assim, de assegurar uma autorização pública do exercício do poder[1]. Do outro lado, um regime de gastos irrestritos é um regime no qual a influência política - oportunidades para manter cargos públicos e para produzir os resultados da competição política - reflecte a posição económica, o que se traduz em desigualdades nas oportunidades de influência efectiva[2].

Segue-se daqui o conflito familiar acerca das restrições sobre os gastos políticos. Alguns rejeitam tais restrições, mesmo quando o seu conteúdo é neutro e estão motivados por um desejo sincero para assegurar uma maior igualdade de influência política. Numa sentença infame, segundo a opinião da maioria, no caso Buckley vs. Valeo, o Supremo Tribunal disse que "o conceito de que o governo pode restringir o discurso de alguns elementos da nossa sociedade a fim de realçar a voz relativa de outros é totalmente estranho à Primeira Emenda"[3]. Como resultado, manifestaram relutância em encontrar qualquer fundamento para além da preocupação com a corrupção de tipo quid pro quo para regular os gastos políticos[4]. Outros, preocupados em insistir sobre a importância da igualdade política justa, argumentam que as restrições são essenciais.
A primeira ideia - a de que não é permissível restringir a voz de alguns de modo a realçar a voz relativa de outros - parece bizarra. A minha explicação anterior dos fundamentos dos direitos de expressão e de participação política sugere uma fundamentação comum para ambos: assim, não há nenhuma base para subordinar o papel da igualdade política. Além disso, uma vez que aceitamos o pressuposto a favor da ponderação igualitária dos votos - uma pessoa/um voto -, já estamos precisamente comprometidos com tais restrições e apoios[5].

Para além disso, concentrar-se na admissibilidade das restrições pode significar que a ênfase esteja a ser colocada no lugar errado. Dados os fundamentos dos direitos de expressão nos princípios de participação e de inclusão deliberativa, seria desejável promover a igualdade de oportunidades para a influência efectiva por meios menos restritivos do que os limites de gastos, com a condição de que esses meios estivessem disponíveis[6]. O rumo natural dessa reconciliação é estabelecer um esquema de financiamento público. A ideia de tal sistema é permanecer no "rés-do-chão" mais do que no "telhado" - subsídios, em vez de limites - para corrigir as violações do princípio de participação[7]. Ao definir o rés-do-chão, um esquema de financiamento público adequado ajudaria a tornar mais acessível a ocupação de cargos públicos; ao reduzir a dependência dos partidos e candidatos dos recursos privados, garante maior igualdade de oportunidades de influência.[8] A eficácia do rés-dochão para promover esta garantia pode depender do condicionamento da disponibilidade de apoio em função da aceitação de limites de gastos. Mas limites desse tipo podem ser desnecessários, dado um regime com grande financiamento público.

É claro que é possível uma ampla variação de esquemas de financiamento público: o auxílio pode ser fornecido aos candidatos ou aos partidos ou aos eleitores individuais (como vouchers cidadãos[9]) , ou, no caso de referendos e plebiscitos, às organizações não partidárias; os fundos podem estar disponíveis para actividade eleitoral ou para o auxílio de partidos em geral; o auxílio pode ser fornecido na forma de acesso gratuito aos mass media. E ao decidir entre estes esquemas, é importante considerar os seus efeitos sobre a deliberação, bem como as oportunidades de influência efectiva. Acho que os vouchers cidadãos são especialmente promissores. Mas não me proponho aqui a entrar nesses detalhes. A questão é afirmar os princípios fundamentais, enfatizar a importância de encontrar algum equilíbrio entre eles tendo em conta a sua base comum no valor da democracia, e indicar que a estratégia do equilíbrio é, grosso modo, uma estratégia de aquisição de poder (empowerment), não de restrição.»
.
...........................................
[1] Isto pode parecer desconcertante. Formulando a suposição de que os reelegíveis têm clara vantagem na angariação de fundos, pode-se ver nitidamente que os candidatos poderiam sair-se melhor num sistema de restrições dos gastos de campanha. Mas, segundo uma importante linha de argumentação, as vantagens precedentes dos reelegíveis torna os candidatos mais dependentes do dinheiro. Portanto, um candidato tem um desempenho melhor com um gasto de 300 mil dólares do que um reelegível que conta com 500 mil, em vez de competir com 250 mil contra um reelegível com a mesma quantia. Veja-se G. Jacobson, "Enough is too much: money and competition in house elections”, in K. L. Schlozman (ed.). Elections in America, Boston, Allen and Unwin, 1987, pp. 173-95. Para ver críticas da perspectiva de Jacobson, veja-se D. P. Green; J. S. Krasno, "Salvation for the spendthrift incumbent: reestimating the effects of campaign spending in house elections", American Journal of Political Science, v. 32, n. 4, Novembro 1988, pp. 884-907.
[2] Refiro-me a um "regime" de gastos sem restrições porque a escolha entre sistemas de financiamento é uma escolha entre esquemas alternativos de permissão e restrições, não uma escolha entre regulação e desregulação.
[3] 424 U.S., I, 1976, pp. 48-9.
[4] Buckley, em 26-27.
[5] Veja-se Gray vs. Sanders, 372 U.S.,368, 1963; Wesberry vs. Sanders, 376 U.S., I, 1964; Reynolds vs. Sims, 377 U.S. 533, 1964. A tensão entre as decisões sobre a proporcionalidade e Buckley é destacada em J. Rawls, Political LIberalism, op. cit., p. 361; e em D. A. Strauus, "Corruption, equality, and campaign finance reform", Columbia Law Review, v. 94, n. 4, Maio 1994, pp. 1328-1383. O próprio Tribunal retratou-se e abandonou a postura de Buckley, reconhecendo as possibilidades de corrupção que redundam em influências injustas sem quid pro quo, e o carácter permissivo das regulações sobre gastos - pelo menos no caso das corporações lucrativas -, com vista a evitar essa corrupção. Veja-se Austin vs. Michigan Chamber of Commerce, 494 U.S., 652, 660, 1990.
[6] Um dos problemas associados ao facto de ater-se principalmente às restrições do gasto é o da capacidade dos contribuintes e candidatos para gerir as restrições. Veja-se F. Sorauf, Inside campaign finance: myths and realities, New Haven: Yale University Press, 1982. Aumenta-se o nível de subsídio público, e serão reduzidos os incentivos para tais exercícios.
[7] Os EUA são um dos quatro países que estipulam limites às contribuições. Todos os demais países dependem mais substancialmente que os EUA do financiamento público: os países escandinavos não estabelecem limites às contríbuições ou aos gastos, e dependem inteiramente dos fundos públicos. Veja-se E. S. Miller; J. Rogers, The world of campaign finance, Madison/Washington, D.C., Center for a New Democracy/Center for Responsives Politics, 1992.
[8] Para a descrição de um esquema de financiamento público estimulado por preocuapçãoes em torno da igualdade e da deliberação, veja-se J. Raskin; J. Bonifaz, “The constitucional imperative and pratical superiority of democractic financed elections”, Columbia Law Review, v. 94, nº 4, Maio 1994, pp. 1204-57.
[9] Sobre os sistemas de voucher, veja-se B. Ackerman, "Crediting the Voters: a new beginning for campaign finance", American Prospect, Primavera 1993; e E. Foley, "Equal dollars per voter: a constitutional principIe of campaign finance”, Columbia Law Review, v. 94, n. 4, Maio 1994, pp.l204-57.
..

Sem comentários: